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Vale Ver Guará

08/06/2015

A grande sensação do momento é o ‘selfie’, uma espécie de autorretrato que tomou conta da internet e das redes sociais. A inclusão do verbete no respeitabilíssimo dicionário Oxford, o mais extenso da língua inglesa, também reconhece essa nova maneira de expressão como um fenômeno global. Entretanto, a fotografia representa muito mais do que um estado de espírito. Ela é capaz de eternizar um momento materializado em sombras, luzes, tonalidades e nuances projetadas num papel ou num display.
 
Foi por volta de 1997, com o surgimento das primeiras câmeras digitais comerciais, que a história da ascenção da fotografia digital começou a ser escrita. Hoje, dentre as redes sociais, é o Facebook quem encabeça o movimento, com um repositório de imagens cada vez maior,  principalmente porque quem observa uma foto pode decidir quanto tempo quer se dedicar a ela, diferente de assistir a um vídeo ou ler um texto. Ao trocarmos ideias fotográficas na rede, construímos a cultura visual de nossa época e  partilhamos valores  formais de um tempo.
 
Segundo pesquisas, a  experiência de apreciar uma imagem estimula diferentes áreas do cérebro. O efeito positivo também está no desejo de produzir e compartilhar fotos como um registro histórico ou uma recordação, aquilo que desperta sensações diversas em quem retira da memória fatos vividos durante aquela cena.
 
Se  a fotografia é um modo de ver o mundo, será que ela serviria também para uma pessoa cega?
 
É bastante comum que quem não conviva com pessoas cegas não entenda que as imagens também estejam presentes na vida delas. Criar uma barreira imaginária entre o mundo visoscêntrico e o universo tátil é, de fato, muito praticado e, por isso, quem não consegue enxergar as fotografias acaba não sendo acostumado a lidar com o cenário estático que está diante de si, ou distante alguns palmos, que nem mesmo com braços esticados e dedos ágeis será capaz de  tocá-lo.
 
Talvez não seja eu a exceção, mas aprendi desde cedo a elaborar minhas fotografias mentais daquilo que eu nunca consegui ver nitidamente. Não se trata de um mundo inteiro reproduzido em maquetes, com contornos improvisados com cola ou barbante. Naturalmente curiosa, perguntava sobre tudo aquilo que me rodeava e enquanto ouvia o som das palavras que nomeavam objetos, expressões, movimentos, cores, ia esculpindo meu quadro imaginário. É certo que jamais saberei se seria  fiel ao original, mas a beleza desses contornos simétricos foram como exercício que tornaram meu repertório mais rico e colorido. Enxergo o mundo numa sequência de quadros pintados na minha memória graças aos olhos emprestados de alguém.
 
Hoje, essa arte de descortinar as imagens com palavras é reconhecida oficialmente como audiodescrição, sendo um recurso aplicado tanto para imagens estáticas, como para cenas em movimento. A audiodescrição consiste na descrição clara e objetiva de todos os elementos visuais, traduzidos em áudio ou em texto, para que pessoas cegas, como eu, apreciem a arte do cinema e  da fotografia, por exemplo.
 
Sou apaixonada por fotografias e enquanto as palavras vão rabiscando o esboço daquela cena congelada, posso buscar na memória um cheiro, um estado de espírito, uma aspereza ou maciez que vão revestindo a lacuna para formar o quebra-cabeça de um histórico momento. Nem todos sabem que as imagens podem ser traduzidas e ainda, pouca gente imagina que fotografias fazem parte do cotidiano de pessoas cegas, por isso raramente elas aparecem com legendas ou descrição nas redes sociais.
 
É uma avalanche de imagens que toma conta da nossa telinha e que se distancia de nós, porque  os leitores de tela, softwares que utilizamos para transformar os textos em fala, não são capazes, ainda, de ‘ler’ uma fotografia, já que a prática da audiodescrição de imagens estáticas é rara e encontrada com mais frequência em perfis de pessoas engajadas com inclusão e acessibilidade. Nas redes sociais, procuro descobrir o conteúdo das fotografias sem audiodescrição quando clico nos comentários e vou juntando as informações. Nem sempre resulta em sucesso.
 
Já faz algum tempo que esbarrei com algo muito inédito no Facebook: uma foto descrita, numa Fanpage comum sem qualquer relação com deficiência, inclusão ou acessibilidade. Passei a acompanhar, com entusiasmo, aquelas publicações que vez ou outra surgiam para colorir meu feed de notícias. Trata-se de fotos antigas de Guaratinguetá, descritas com uma infinidade de detalhes, que contavam história, mostravam em perspectivas e ângulos uma cidade que jamais eu teria oportunidade de conhecer senão através desses registros memoráveis. Sabia que aquelas palavras não foram feitas pra mim, muito menos pra outra pessoa cega. 

Não conhecia o administrador daquela Fanpage, como ainda não o conheço até o momento que escrevi esse texto.
 
Comecei vendo o bondinho dos anos de 1914 até sua última viagem, ocorrida em 1955, o detalhe dos trilhos, do trajeto que fazia pelas ruas de Guaratinguetá. Vi também alguns modelos de carros antigos, estacionados em ruas ao redor da praça central. As construções e prédios que não mais existem ou que estão ocupados pelo comércio local. Vestimentas e trajes usados em diferentes tempos. Homens fardados construindo uma  ponte. O Rio Paraíba capturado em diversos momentos. Barcas com um robusto motor, ônibus da época estacionado, postes de iluminação pública com lâmpadas incandescentes, ruas ainda sem pavimentação e acontecimentos históricos, como a chegada do caixão que trazia o corpo do ex-presidente Rodrigues Alves. Foram tantas as imagens vistas que era difícil segurar a emoção. Ali eu estava enxergando como qualquer outra pessoa que passeava pelas redes sociais.
 
Só consegui ver tudo isso porque alguém do outro lado, mesmo sem saber, emprestou seus olhos e pintou com palavras o cenário que retrata a história de Guaratinguetá. Essas fotografias têm ritmo, tem movimento e nuances de um progresso que sufocou o sossego de uma vila pacata. Progresso este necessário para o desenvolvimento de uma sociedade moderna, tão moderna a ponto de ter um rico acervo agora digitalizado, armazenado numa das redes sociais mais frequentadas pela nossa geração.
 
Vale Ver Guará é o nome de capa dessa Fanpage que trouxe pra minha vida muito mais do que fotografias históricas da minha cidade. Trouxe o conceito de que é possível praticar inclusão e acessibilidade sem mesmo fazer dessa ação, uma marca exclusiva para angariar seguidores ou cativar um público específico. Eu sempre tive a certeza, ao ‘ver’ aquelas fotografias, que a pessoa que produzia as descrições não tinha noção que essa arte poderia ser contemplada por uma pessoa cega. E por isso a tecnologia nos faz mais iguais na multidão.
 
As pessoas que têm a alma de artista são aquelas que transformam simples momentos em fatos inesquecíveis. Não é artista apenas um fotógrafo, um escultor, um pintor; é artista aquele que, com sua sensibilidade, é capaz de converter a sombra em luz, os traços em movimento, as cores em palavras. Minha homenagem ao Vale Ver Guará, que trouxe a essência do progresso sem se esquecer do brilho no olhar de quem aprecia os pequenos detalhes. 
 
A Fanpage Vale Ver Guará pode ser acessada pelo endereço javascript:nicTemp(); e possui um repositório com centenas de fotos históricas da cidade de Guaratinguetá, capturadas por diferentes fotógrafos. É administrada por Zéck Broca, com atualizações constantes do acervo de imagens.

COLUNISTAS / Luciane Molina

Luciane Molina é pedagoga, braillista e pessoa com deficiência visual. Possui pós-graduação em Atendimento Educacional Especializado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e em Tecnologia, Formação de Professores e Sociedade pela Unifei (Universidade Federal de Itajubá).  Sua trajetória profissional inclui trabalhos com educação inclusiva, ensino do sistema Braille, da tecnologia assistiva, do soroban  e demais recursos para pessoas cegas ou com baixa visão, além de atuar desde 2006 com formação de professores.  Foi vencedora do IV Prêmio Sentidos, em 2011, e do IV Ações Inclusivas, em 2014, ambos pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo (SEDPCD-SP). Também é palestrante e co-autora do livro Educação Digital: a tecnologia a favor da inclusão. Atualmente, integra a equipe técnica da Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do Idoso de Caraguatatuba (SEPEDI), com ações voltadas para a comunicação inclusiva, políticas públicas para pessoas com deficiência visual e Núcleo de Apoio às Deficiências Sensoriais.


braillu@uol.com.br

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