Sempre me incomodou o fato de pessoas com deficiência visual ficarem em ambientes separados. Geralmente reúne-se um grupo de cegos com a justificativa de que precisam socializar-se entre si ou que necessitam de um “cuidado” e um “aprendizado” diferenciado, que poucos profissionais dominam para transmitir. Organizam um espaço adaptado, com recursos dos mais simples aos mais sofisticados, longe do que acontece la fora. Ali dentro, a segurança e o comodismo reproduzem a conhecida história da fábula da Águia e a Galinha.
Nessa fábula, o autor conta a história de um filhote de águia que foi encontrado por um camponês e colocado em um galinheiro. Anos se passaram e a águia ali foi criada como se fosse uma galinha. Então um naturalista apareceu e queria provar ao camponês que a águia ainda conservava seu instinto natural, de alçar altos voos. Levou-a para um ponto mais alto e ordenou que voasse. Ao avistar o galinheiro, a águia pulou para lá, como se ali fosse o lugar mais seguro, longe dos perigos, cômodo e sem desafios; afinal, ela havia se acostumado a ser uma galinha. Não satisfeito, o naturalista levou a águia para uma montanha muito alta e longe do galinheiro, onde ela poderia avistar o sol brilhando e a natureza à sua espera. Ordenou novamente que voasse. A águia abriu timidamente suas asas e devagarinho desapareceu no céu, provando que seu instinto jamais morrera.
Ainda somos a minoria que conseguimos voar além dos limites de um galinheiro. Temos a consciência de que os desafios servem para mostrar muito mais os nossos alcances do que os nossos limites, porque enquanto estivermos escondidos em guetos, a sociedade nunca irá nos enxergar. E se a invisibilidade não mobiliza a transformação que queremos, vamos continuar ora incomodando com nossa presença e ora servindo como troféu, para sustentar um sensacionalismo em prol de um serviço que sequer atende os anseios desse grupo, mas que traz certo status de merecimento aos olhos de quem está assistindo esse espetáculo de fora.
Já avançamos e muito. Se olharmos para trás, nossas conquistas já ultrapassaram uma centena de barreiras sociais, envolvendo educação, transporte, saúde, reabilitação, lazer, entre outros. Estamos muito mais nas mídias do que antes e colecionamos várias dezenas de dispositivos legais que nos devolvem o direito ao exercício da cidadania. As tecnologias criadas tornaram muitas das nossas atividades possíveis. No interior, as coisas tendem a ser mais difíceis, porque o investimento em política pública vai somente até onde essa minoria está, deixando de fora tantas outras pessoas com deficiência, que ainda estão dentro de suas casas porque a estrutura urbana não lhes deixa caminhar em meio à multidão e, por isso, elas não existem de fato.
O investimento em acessibilidade é um retorno que vai além do sorriso no rosto em poder caminhar em uma calçada com segurança, na satisfação de receber um livro didático em Braille, na surpresa de ser tratado com dignidade, de assistir a um espetáculo com audiodescrição ou de acessar um computador com leitor de tela em uma biblioteca pública. A conquista dessa cidadania inclui uma fiscalização efetiva quanto ao uso das vagas exclusivas para o estacionamento de veículos que transportam pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, o respeito quanto ao uso das filas preferenciais e no atendimento prioritário num banco, num supermercado ou numa loja. A inclusão requer que não apenas os serviços, ambientes e produtos estejam adaptados, mas invistam na empregabilidade da pessoa com deficiência, porque somente assim elas se tornarão consumidoras e participarão da economia do nosso país. As políticas públicas para pessoas com deficiência precisam ir onde o povo está, não apenas dentro de espaços que agrupam pessoas aos seus pares.
E se existe o mito de que fazer acessibilidade custa caro, digo-lhes que o preço que se paga pela falta de acesso é muito mais alto do que qualquer investimento que leve em conta a diversidade. Continuo afirmando que, para movimentar as asas dessas tantas águias que ainda estão dentro dos galinheiros, é preciso chamá-las onde o povo está. Oferecer-lhes condições de participar dos eventos, frequentar as escolas, terem chance de competir no mercado de trabalho, praticar esporte e ter garantido seu lazer. Enfim, inseri-las em atividades comuns a qualquer pessoa. Chega de sensacionalismo, chega de paternalismo, porque a identidade de um povo é justamente compreender que a deficiência não mata o instinto da águia que pode voar em direção ao sol.
Luciane Molina é pedagoga, braillista e pessoa com deficiência visual. Possui pós-graduação em Atendimento Educacional Especializado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e em Tecnologia, Formação de Professores e Sociedade pela Unifei (Universidade Federal de Itajubá). Sua trajetória profissional inclui trabalhos com educação inclusiva, ensino do sistema Braille, da tecnologia assistiva, do soroban e demais recursos para pessoas cegas ou com baixa visão, além de atuar desde 2006 com formação de professores. Foi vencedora do IV Prêmio Sentidos, em 2011, e do IV Ações Inclusivas, em 2014, ambos pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo (SEDPCD-SP). Também é palestrante e co-autora do livro Educação Digital: a tecnologia a favor da inclusão. Atualmente, integra a equipe técnica da Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do Idoso de Caraguatatuba (SEPEDI), com ações voltadas para a comunicação inclusiva, políticas públicas para pessoas com deficiência visual e Núcleo de Apoio às Deficiências Sensoriais.
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