Faleceu ontem, às duas e meia da tarde, o sr. dr. Afonso Pena, Presidente da República. Nesta hora de incertezas, quando os espíritos ainda não serenaram e a tempestade política continua, a morte inesperada do chefe da nação, vitimado no meio dessa tremenda crise, vem agravar sobremodo a situação. Nunca o Brasil precisou tanto como hoje da lealdade e firmeza dos homens que o dirigem. (…) O que há é só a obrigação imperiosa de restabelecer a harmonia e honrar a memória do morto, por atos que traduzam a firme vontade de encaminhar da melhor maneira os destinos do Brasil. Não é admissível que tenhamos que voltar ao desassossego dos primeiros anos.
Jornal do Comércio – (15. 06. 1909)
Afonso Pena morreu um ano antes de completar seu mandato e, como não conseguiu articular um nome para a sucessão, deixou o país em meio a um turbilhão político que resultou na candidatura de um representante militar, Marechal Hermes da Fonseca e no surgimento de um representante civil, Rui Barbosa. Ao largo dessa disputa, o movimento operário seguia em plena marcha unindo representantes de várias tendências, dos socialistas aos anarco-sindicalistas, em busca de melhores condições de trabalho.
Neste quadro de incertezas, descontentamentos e ameaças surgiu a história para um novo texto – Trindade, que comecei a escrever em meados de maio de 2005 e que estrearia em outubro do mesmo ano, no Espaço Sesc – Copacabana, no Rio de Janeiro. Na peça, um representante da classe militar (vivido por Herson Capri), que tem como princípios básicos os ideais positivistas, e um agitador ligado ao movimento trabalhista (personagem de Guilherme Leme), descrente do voto e das relações com o “parlamento burguês”, se encontram para decidir uma questão delicada e inesperada. No meio do conflito pessoal destes dois homens, um jovem médico (Pedro Garcia Neto), dividido entre os dois extremos, enfrenta a difícil tarefa de se posicionar política, ideológica e afetivamente diante dos distúrbios que se apresentam.
Trindade, na verdade, fala sobre a questão da paternidade. Um rapaz criado por um militar descobre, às vésperas de seu casamento, que era, na verdade, filho de um intrépido militante das forças operárias. Por inúmeras questões, principalmente políticas, só conhece o verdadeiro pai quando entra na vida adulta e, por forças das circunstâncias, reluta entre continuar seguindo as orientações do homem que o criou e do novo personagem que começa a revelar – em uma série de encontros clandestinos – como, por questões ideológicas, foi obrigado a deixar o filho para seguir sua vida de militante, na esperança de deixar, para o próprio filho (e suas próximas gerações) um país menos injusto.
Foi conversando com um amigo que me lembrei, no fim de semana, que há exatos dez anos, Trindade nascia numa roda de conversas e cinco meses depois, estreava num teatro carioca, com uma bela e premiada carreira, que se entendeu para outras cidades do país e mereceu, dois anos depois, uma montagem paulistana. Mas a ideia desse artigo veio quando assisti, no início da semana, a uma entrevista da antropóloga e professora da USP, Lilia Moritz Schwarcz, que, ao lado da historiadora Heloisa Murgel Starling, acaba de lançar o livro “Brasil – Uma Biografia”, um registro de quase 800 páginas que propõe um novo olhar sobre a história do nosso país, desde o seu nascimento até o processo de redemocratização (após o período da ditadura militar), já no século XX.
De tudo o que foi dito pela autora na citada entrevista, uma questão me perturbou: como, em quase toda oportunidade que temos, insistimos em falar do Brasil com um país idealizado, onde não existiram guerras (só nos lembramos da do Paraguai), um paraíso multirracial onde o preconceito não tem vez, onde raríssimas vezes somos assaltados por catástrofes naturais, um lugar de homens pacíficos, generosos, fadadamente hospitaleiros e abençoados quando, na verdade, nossa história (e nossa vida cotidiana) está coalhada de acontecimentos violentos e incontáveis revoluções sociais. Comecei a me lembrar de que, quando fui mergulhar no início da aventura republicana brasileira, para escrever Trindade, me deparei com momentos de extrema conturbação, de revoltas e um sem número de protestos e desassossegos, de enfrentamentos violentos e protestos intermináveis. A própria trajetória de minhas três personagens estava repleta de insatisfações e dúvidas provenientes não só da saga pessoal que inventei para cada uma delas, como do pano de fundo onde se passava a história.
Tudo isso despertou em mim uma grande vontade de ler o livro, não só para conhecer o trabalho de duas importantes historiadoras do atual cenário intelectual brasileiro, como para reforçar uma ideia que sempre tive: a de que ao sermos um país formado por habitantes pacíficos, cordiais e de bem com a vida somos, igualmente – ou prioritariamente – uma nação de homens e mulheres que enfrentam, desde o início de nossos tempos, uma luta diária, violenta e incansável para viver numa sociedade mais justa e igualitária. Ainda que, muitas vezes, não nos demos conta.
Trindade (Com Herson Capri, Guilherme Leme e Pedro Garcia Netto – texto e direção de Caio de Andrade) estreou em outubro de 2005, no Espaço Sesc Copacabana, cumpriu nova temporada no Teatro do Leblon (Sala Fernanda Montenegro), e, em seguida, participou do Circuito Sesc. Recebeu duas indicações para o Prêmio Shell (Caio de Andrade – Melhor Texto e Herson Capri – Melhor Ator). Em 2007, foi montada em São Paulo (Teatro Aliança Francesa), com Guilherme Leme, Luciano Chirolli e Pedro Neschling e a direção de Caio de Andrade.