Por Gabriela de Aquino Costa
Quando Ana passou lá em casa, notei sua expressão cansada e as olheiras cobertas de pó, que insistentemente ela tentou esconder. O olhar estava iluminado por uma sombra prateada que tentava disfarçar o desânimo que seus olhos carregavam. Seu vestido preto marcava sua silhueta graciosamente e não deixava vulgar o quadril bem delineado.
– Você está linda, senhorita. – falou, logo que abri a porta.
Sorri como de costume, ainda não acostumada com aquela intimidade repentina que surgiu entre nós, desde aquela noite na boate. Ela segurou minha mão enquanto descia as escadas e acompanhou com os olhos cada pisada até o final, quando ergueu os olhos e me encarou.
– Gostei da cor do vestido. – ela disse.
Bordô. Da mesma cor do batom na minha boca. Sorri, mordendo os lábios quase sem perceber, mas notei seu sorriso tranquilo quase desmanchar-se ao prender a respiração. Engoliu em seco quase imperceptivelmente e baixou o olhar.
– Não morda os lábios. Vai tirar o batom. – falou, com um falso tom de descontração. – Entre no carro, vamos nos atrasar.
– Onde está Clara? – perguntei, ao notar que Clara não estava no carro.
– Ela não vai. – respondeu-me rápido para depois acrescentar, como se lamentasse pela falta da amada. – Ela passou o dia com enxaqueca. Prefere descansar. Amanhã o dia será longo.
Hoje, me lembrando daquela noite, sinto que perdi algo no momento em que fechei a porta e a deixei sair, depois que voltamos daquele restaurante. Surgem como borrões os risos dos nossos amigos na mesa do bar, já bêbados nos esperando, antes de sentarmos à mesa.
Borrões são as conversas distorcidas entre as garrafas e os goles de vinho. Mas não são borrões os momentos em que a peguei me olhando intensamente, ou quando baixava o olhar, embaraçada. Também não é um borrão a hora em que, chegando em casa, com o vinho subindo à cabeça, eu a convidei para entrar. Talvez um erro.
Hoje, eu a teria deixado ficar. Sentir sua respiração na minha nuca, chegando cada vez mais próxima enquanto procurava uma roupa para trocar. Sentir suas mãos hesitantes na minha cintura. Minha respiração parando por um segundo. Ela queria. Eu queria. Mas era uma fraqueza que ela se deixasse dominar por esse desejo. Vinho. Bordô.
Abriu meu zíper lentamente, deixando minhas costas nuas, onde seu dedo percorria minha espinha. Encostou os lábios no meu ombro e me virei para encará-la. Erro. Tomou-me um beijo lascivo e quente. Suas mãos percorriam meu corpo. Caímos na cama ao lado. Eu desmanchei seu penteado e subi as mãos por suas coxas. Era tanta carne, tanto suspiro, tanta saliva. Clara.
Foi quase como um choque. Clara. A palavra não parava de piscar como um letreiro berrante e psicodélico. Clara. Que merda! Abri os olhos sentindo a língua quente na minha boca e dedos macios apertando minha cintura. Empurrei Ana quase em pânico. Ela entendeu o meu recado assim que viu meu rosto desesperado e quase em prantos.
Entrei no banheiro e lá fiquei, cabeça mergulhada na água. Quando saí, ouvi seus passos na escada. Corri ao seu encontro e a encontrei abrindo a porta. Parei nos últimos degraus e ela se virou para mim, sorrindo. ‘Nos vemos depois’, ela disse e saiu. Fechei a porta e recostei sobre ela. Não houve um depois.
Sobre a autora:
Gabriela de Aquino Costa, descendente do povo Munduruku, é graduanda em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e membro fundador da Academia Jovem de Letras de Lorena. Nascida entre pais escritores e professores, desenvolveu o gosto pela leitura e escrita desde muito nova. Recentemente, alguns de seus textos foram publicados, pela primeira vez, na Revista Leetra Indígena, da Universidade Federal de São Carlos.