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Uma Presença Notável: a arte de encontrar pistas não visuais para identificar uma pessoa ao redor

26/06/2015

Um acenar com as  mãos, um olhar, um sorriso em silêncio, nada disso está ao nosso alcance se não tiver um complemento que faça sentido. Absolutamente não dependemos da visão para reconhecer uma pessoa, mas precisamos de um tempo maior para assimilar algum detalhe que nos permita perceber, com segurança, quem está por perto.
Fico sempre muito atenta para captar esses detalhes, como um jeito diferente de falar, um sotaque, o timbre de voz grave ou aguda. A direção de onde vem o som também me  permite perceber se a pessoa é alta ou mais baixa, mesmo que algumas delas utilizem o truque do salto para alterar a estatura original. Embora a voz seja um dos fatores decisivos, não é ela somente a responsável por revelar a identidade de quem se aproxima. Também não é num primeiro contato que conseguimos memorizar a ‘fisionomia’ vocal. Daí vem a famosa frase proferida a cegos do mundo inteiro: ‘adivinha quem sou eu?”
 
Às vezes, sem mesmo notar, um acessório faz muita diferença para facilitar a identificação de alguém. Frequentemente, reconheço uma amiga do trabalho pela pulseira que ela usa. Sei quando outro está chegando porque sempre carrega uma chave. O vizinho de sessão pelo sonoro ‘Bom dia’ e o deslizar de sua cadeira de rodas. A estagiária, pelo ritmo ao digitar no teclado do computador.  Uma outra companheira de setor ao passar segurando seu cafezinho. Até o silêncio é capaz de revelar a presença de uma pessoa por perto. Ser notado é uma questão de estilo, de sonoridade, de cheiro e de toque.
Gosto quando alguém anuncia sua presença identificando-se. É como se houvesse uma troca de olhar, um cumprimento personalizado. Ser mais direto nos dá a chance de iniciar um diálogo sem titubear, sem precisar recorrer às pistas que memorizamos para reconhecer quem está ali, além do entendimento imediato de que estão dirigindo-se a mim.
 
Atenta aos detalhes, já surpreendi muita gente ao reconhecê-las sem que verbalizem palavra alguma.  Já é de costume chamar uma colega de trabalho pelo nome quando passa por mim. Mal sabe ela que sua identidade é revelada pelos passos, que mesmo distantes são notados com uma sonoridade incrível e um ritmo que é só dela. E nem adianta mudar de sapato ou andar na ponta do pé feito bailarina. Já peguei, no flagra, uma aluna que chegou atrasada e passou por trás de mim, talvez para não atrapalhar a aula. Quando virei e falei seu nome, ela  ficou vermelha de vergonha e a turma se divertiu, inclusive eu.
 
O perfume é um capítulo à parte. Além de revelar a identidade de uma pessoa, o aroma nos remete a lembranças de momentos e situações vividas. Mudança de perfume pode confundir, mas faz com que a presença seja mais intensa e duradoura.
 
Isso não se chama compensação da natureza, muito menos um poder sobrenatural. Sequer todos os cegos do mundo conseguem estabelecer essas relações de maneira equivalentes. Se alguém nasce cego ou perde a visão em alguma fase da vida, a cegueira se torna um lugar comum, mas o fato de não enxergar não nos torna iguais. Esse lugar comum faz com que haja um aprendizado natural para reconhecer o mundo ao redor. Um cego não possui uma capacidade maior de audição, também não adivinha quem está chegando pela força do pensamento, nem por telepatia. As condições do ambiente podem influenciar a interpretação das pistas, como excesso de ruídos, por exemplo, levando-nos a equívocos, sinal que também somos falíveis dentro das nossas habilidades.

COLUNISTAS / Luciane Molina

Luciane Molina é pedagoga, braillista e pessoa com deficiência visual. Possui pós-graduação em Atendimento Educacional Especializado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e em Tecnologia, Formação de Professores e Sociedade pela Unifei (Universidade Federal de Itajubá).  Sua trajetória profissional inclui trabalhos com educação inclusiva, ensino do sistema Braille, da tecnologia assistiva, do soroban  e demais recursos para pessoas cegas ou com baixa visão, além de atuar desde 2006 com formação de professores.  Foi vencedora do IV Prêmio Sentidos, em 2011, e do IV Ações Inclusivas, em 2014, ambos pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo (SEDPCD-SP). Também é palestrante e co-autora do livro Educação Digital: a tecnologia a favor da inclusão. Atualmente, integra a equipe técnica da Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do Idoso de Caraguatatuba (SEPEDI), com ações voltadas para a comunicação inclusiva, políticas públicas para pessoas com deficiência visual e Núcleo de Apoio às Deficiências Sensoriais.


braillu@uol.com.br

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