Apesar de todo meu esforço, eu não conseguia acompanhar os estudos. Não conseguia entender muito bem as coisas que meus professores ensinavam ou queriam ensinar. Para piorar tudo, eu levava uma porção de tarefas para casa a fim de treinar, treinar e treinar. Diziam os professores que era a única maneira de aprender: decorar as fórmulas, os lugares, os verbos, as métricas. Isso me aborrecia porque me faziam sentir um burro incapaz de aprender o que todo mundo aprendia com rapidez.
Meus pais tentavam me ajudar, mas o que eles poderiam fazer? Nada ou quase nada, a não ser me obrigar a treinar, treinar e treinar. Minhas brincadeiras ficavam prejudicadas por causa dessa dificuldade, minhas invenções e jogos paravam; as arapucas não podiam ser observadas para ver se tinham pego alguma sururina. Eu até me sentia culpado porque sabia que minha caça estava à mercê de uma cobra qualquer e sem poder se defender a coitada.
Meus irmãos estudavam em outras escolas e também não podiam me ajudar com os deveres. Nessas horas eu ficava imaginando o tamanho da solidão que o mundo da cidade vive. As crianças de lá não podem brincar porque ficam prisioneiras das tarefas escolares. Crianças que não brincam vivem presas na solidão.
Um dia, meu pai disse que iria dar jeito na “minha doença de estudar”. Fiquei curioso para saber como seria isso. Ele me disse que nas férias escolares tudo iria se resolver. Confesso que fiquei feliz, mas curioso, especialmente por não saber que se tratava de uma doença essa coisa de querer estudar. Como não estava muito longe das férias, fui embromando o máximo que pude com as tarefas da escola.
Quando as férias chegaram, pegamos um ônibus e fomos para a aldeia. Ali era o paraíso na Terra. Eu tinha tudo o que precisava para que minha felicidade fosse completa e ainda estava livre da escola e suas entediantes tarefas. Acontece que meu pai tinha outros planos para mim e que eu já havia esquecido.
Tão logo chegamos lá, ele me convidou para ir à casa de meu avô. Lá, o velho já nos esperava como se adivinhasse que a gente chegaria. Meu pai explicou para ele o que estava acontecendo comigo. O velho ouviu tudo em silêncio e de cabeça baixa. Depois, pediu para que meu pai saísse e nos deixasse sozinhos. Logo que ele foi embora, meu avô acendeu o cigarro de palha tauari e fez fumaça sobre minha cabeça. Cantou uma cantiga ancestral e me deixou inspirar o perfume do cigarro. Em seguida, me olhou nos olhos e disse que eu precisava fortalecer minha memória, caso eu quisesse ir bem na escola.
– O que devo fazer, meu avô? – perguntei.
Ele apenas mandou que eu retornasse à sua casa no dia seguinte bem cedo.
Quando voltei na manhã seguinte, notei que havia um cheiro bem estranho no ar. O velho estava esquentando um pouco de água para fazer café. Quando notou minha presença, mandou que sentasse num banquinho e mais uma vez jogou fumaça em minha cabeça. Quis perguntar que cheiro era aquele, mas achei melhor não saber. Ficamos assim por alguns minutos. Em seguida, o velho começou a manipular um estranho monturo que estava ali e que era, eu percebia agora, a origem daquele odor.
Ele mandou que eu ficasse ali sentado. Obedeci. Postou-se à minha frente e passou a jogar aquela pasta fedida em minha cabeça até que formasse uma espécie de chapéu. Protestei, mas ele mandou ficar quieto. Completou o serviço e foi logo me dizendo que eu deveria passar uma semana inteira com aquele chapéu na cabeça e não deveria tirar nem mesmo pra dormir. Fiquei passado com aquilo. Perguntei, então, o que era aquela pasta mal cheirosa.
– É um chapéu confeccionado à base de bosta de anta. Ele serve para amolecer sua memória e ajudá-lo a aprender as coisas de maneira mais fáceis e rápidas. Não se preocupe porque depois ele vai endurecer na sua cabeça. Quando isso acontecer, sua capacidade de aprender será outra.
– Eu vou ter que andar com isso uma semana toda? – perguntei desesperado.
– Vai ter que andar sim. É para seu bem. Depois você vai notar que foi um bom remédio.
Não adiantava nada eu ficar questionando o velho. Saí da casa imediatamente, sabendo que minha cabeça estava exalando um odor horroroso. Todos os que passavam por mim levavam a mão ao nariz e riam sem parar. As meninas ficavam enojadas com aquilo e me mandavam ir embora dali. Foi uma experiência cruel.
Nunca soube se aquele “remédio” foi bom ou ruim para aprimorar minha memória, mas o som da voz de meu pai dizendo que me levaria à aldeia caso eu reclamasse da escola, me arrepiava e eu corria para fazer as lições de casa.
Daniel Munduruku é graduado em filosofia e doutor em Educação pela USP(Universidade de São Paulo).
Autor de premiados livros para crianças e jovens, reconhecido nacional e internacionalmente, comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República. Reside em Lorena desde 1987; é casado com a professora Tania Mara, com quem tem três filhos.
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