Toda Quarta-feira de Cinzas, a Igreja Católica inaugura o chamado “tempo quaresmal”, também acompanhado do lançamento da Campanha da Fraternidade, uma iniciativa cuja função é conscientizar a população sobre um tema importante para a sociedade. Este ano, a Campanha da Fraternidade será ainda mais especial, pois terá índole ecumênica (oikoumenikós, palavra grega que significa “aberto ao mundo inteiro”), ou seja, foi organizada pelo CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil). São membras do CONIC as Igrejas Católica, Anglicana, Luterana, Presbiteriana Unida e Sirian Ortodoxa.
Às vezes olhamos a religião de forma preconceituosa, como se as igrejas e os religiosos fossem rios paralelos que nunca se encontram; na verdade, silenciosamente a maravilha da unidade acontece! No ano passado, membros dessas igrejas se encontraram mês após mês, preparando o material deste ano com carinho, dedicação e oração. O tema será: “Casa Comum, nossa responsabilidade” – uma referência à Encíclica Laudato Si’ (Louvado Seja) do Papa Francisco.
O objetivo desta Campanha é assegurar o acesso de todos ao Saneamento Básico, através de políticas públicas e atitudes responsáveis para com nossa “Casa Comum” e o seu futuro. O texto de referência da Campanha da Fraternidade Ecumênica consta de 3 partes: VER, JULGAR e AGIR. Na primeira parte (VER), são apresentados dados preocupantes sobre a situação do saneamento em nosso planeta. Por exemplo, no mundo morre uma criança a cada 3 minutos por não ter acesso à água potável ou à rede de esgotos e condições básicas de higiene. No Brasil, mais de 70% dos resíduos sólidos não são tratados adequadamente. Como a água é um recurso tão escasso, que no futuro talvez seja motivo de disputas internacionais, é grave a falta de tratamento do esgoto e o desperdício na distribuição de água (que chega a 37% no país).
Conta a lenda grega que, certa vez, Tântalo – rei da Lídia – foi recebido pelos deuses para um banquete no Olimpo. Mas, encantado com a variedade da mesa dos deuses, contrabandeou o néctar e a ambrosia para entregá-los ao deleite dos mortais. Como punição, foi condenado pelos deuses ao castigo eterno (“tantalizante”): iria padecer de sede e fome, mas teria sempre à frente a visão de comida e água em abundância. Será esse nosso destino? Assistir nossos filhos e netos padecerem de fome e sede, enquanto narramos nossas lembranças dos tempos de fartura e desperdício?
A segunda parte do texto-base (JULGAR) aponta-nos o fato de que a religião não deve nosalienar, mas nos animar para transformar a sociedade. É citado o texto do profeta Amós (“Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca”, Am 5,24), um profeta que viveu no século VIII a.C. em Israel. O profeta Amós presenciou numa época de prosperidade em Israel, mas enquanto os ricos acumulavam dinheiro através de práticas corruptas e exploração, os pobres passavam fome. O profeta Amós dizia que Deus tinha horror do culto quando a religião não caminhava com a justiça: “As vossas ofertas eu não aceitarei, e o sacrifício dos vossos animais cevados nem vou contemplar” (Am 5,22).
Finalmente, a terceira parte do texto-base da Campanha refere-se ao nosso AGIR. O que vamos fazer diante desta situação?
Geralmente na Quaresma o católico faz a sua “penitência”, como que oferecendo um sacrifício a Deus assim como Jesus ofereceu-se por amor a nós. Mas o sacrifício de Jesus foi útil: redimiu-nos pelo seu amor apaixonado (passio). Como nos alerta o profeta Amós, a penitência não deve ser alienante, boba, pois Deus irá “desprezá-la” (Am 5,21). Muitos também menosprezam a penitência quaresmal, dizendo que Deus não quer sacrifícios – e se esquecem de que, na verdade, Deus quer o nosso crescimento pessoal e comunitário, e isso passa por mudanças de atitudes. Algumas sugestões de boas penitências para analisarmos:
– Evitar o desperdício de água, quando estiver lavando louça, tomando banho, lavando roupa, lavando a calçada de casa, etc.
– Dar um destino adequado ao óleo de cozinha em minha casa.
– Separar o lixo se onde moro há coleta seletiva de lixo.
– Fazer um dia de jejum, e doar aos mais pobres os alimentos que não consumirmos nesse dia.
– Organizar-se em comunidade ou grupo para levar o debate sobre o tratamento do esgoto à Câmara Municipal.
Sobretudo, nós, brasileiros, sabemos da importância da água, pois nos sensibilizamos com o desastre de Mariana-MG em 2015, no qual milhares de pessoas ficaram sem água potável. Por isso é hora de fazer a nossa parte, não apenas rezar por (pray for) Mariana, mas também agir por (act for). Os gregos diziam que quando o homem transgredia os limites e desequilibrava o ambiente (hybris), ocorria uma ação natural devastadora que buscava reequilibrar a balança (nemesis). Nós temos esperança de que podemos cuidar da nossa Casa Comum antes que enfrentemos as consequências de nossa própria destruição.
Rafael Beck Ferreira
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