Um dos momentos mais complicados e desconfortáveis na vida de uma pessoa cega é aquele que envolve dinheiro. Identificar as notas sempre foi algo difícil para quem não pôde contar com a visão. Mesmo após a chegada da segunda geração da moeda oficial brasileira, trazendo novas cédulas com tamanhos diferentes, a identificação tátil ainda induz ao erro se não comparadas entre si.
A primeira solução que vem à cabeça é a inserção de caracteres em Braille nas notas. No entanto, é uma saída pouco útil: o Braille sairia com o desgaste. Além disso, o Braille é o meio de leitura de muitas pessoas cegas, mas não de todas.
O ex-bancário Altair Zaramella, 63, ficou cego há 18 anos em decorrência de um descolamento de retina. Ele perdeu todas as referências para identificar as cédulas e contava apenas com a confiança das pessoas. Hoje, sua relação com o dinheiro é bastante natural. “Organizo as notas na carteira pela ordem de valor e também pergunto no momento de receber um troco ou quando vou realizar um pagamento”, revelou.
Apesar de nunca ter sido enganado, ele desenvolveu uma estratégia para confiar nas pessoas. “Quando dou uma nota, pergunto se é do valor superior daquele que estou dando. Hipoteticamente a pessoa reage dizendo o valor correto”, contou Zaramella.
A presença da tecnologia também é decisiva para a autonomia da pessoa cega ao lidar com dinheiro. Com um aplicativo instalado no celular, é possível apontar a câmera para a nota e ouvir um retorno sonoro. O ex-bancário utiliza esse recurso para organizar sua carteira antes de sair de casa, mas alerta que o uso desse aplicativo em público gera insegurança. “Para o dia a dia, é demorado e inoportuno. Ficamos vulneráveis a roubos”, pondera.
Por isso, hoje em dia, diz preferir realizar pagamentos e compras com cartão por serem mais confiáveis e ter o retorno do banco quanto às transações. Ele ainda faz questão de ser sempre simpático, ter carisma e manter um sorriso no rosto. Segundo Zaramella, reconhecer as notas individualmente fica difícil por ainda disputarem espaço com as notas antigas. “Talvez todas juntas, seja possível reconhecer uma a uma”.
O analista de sistemas Cássio Santos, 34, cego desde a adolescência, é adepto da tecnologia, mas prefere manter as notas organizadas e confiar nas pessoas para auxiliá-lo na tarefa de informar os valores. Cada um desenvolve uma estratégia diferente. Ele consegue perceber o valor das notas posicionando-as entre os dedos indicador e médio. “Quando dobramos as notas ao meio, cada uma terá uma posição ao longo do dedo. A de R$2, por exemplo, fica mais ou menos na metade do meu indicador”, conta.
O importante é desenvolver estratégias que sejam coerentes a cada caso. Vale ter criatividade para que a relação financeira se estabeleça positivamente, fortalecida pela autonomia das pessoas cegas, que passam a serem consumidoras em potencial. Apesar da tecnologia, ainda hoje a única garantia de não ser enganado é a confiança nas pessoas.
Luciane Molina é pedagoga, braillista e pessoa com deficiência visual. Possui pós-graduação em Atendimento Educacional Especializado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e em Tecnologia, Formação de Professores e Sociedade pela Unifei (Universidade Federal de Itajubá). Sua trajetória profissional inclui trabalhos com educação inclusiva, ensino do sistema Braille, da tecnologia assistiva, do soroban e demais recursos para pessoas cegas ou com baixa visão, além de atuar desde 2006 com formação de professores. Foi vencedora do IV Prêmio Sentidos, em 2011, e do IV Ações Inclusivas, em 2014, ambos pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo (SEDPCD-SP). Também é palestrante e co-autora do livro Educação Digital: a tecnologia a favor da inclusão. Atualmente, integra a equipe técnica da Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do Idoso de Caraguatatuba (SEPEDI), com ações voltadas para a comunicação inclusiva, políticas públicas para pessoas com deficiência visual e Núcleo de Apoio às Deficiências Sensoriais.
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