Enquanto trabalho, passeio ou leio um texto novo, fico buscando enredos e personagens para meus escritos. Cada acontecimento que se converte em história para ser contada, partilhada e projetada na essência do leitor, faz de mim uma espectadora única. Algumas vezes sou parte dessa cena, outras, porém, me revisto da imparcialidade. Confesso que esse distanciamento é muito complexo, principalmente porque o meu olhar tem o foco daquilo que me faz intensa como pessoa e profissional. Hoje o meu relato não será diferente.
Quando os meus olhos já não mais alcançavam as palavras impressas no papel, foram minhas mãos que alcançaram o mundo. O Sistema Braille cumpriu exatamente a função proposta pelo seu inventor: a de libertar a mente da prisão intelectual imposta pela falta da visão. Lembro-me com entusiasmo dos momentos de aprendizado que antecederam a leitura do meu primeiro livro. Uma leitura que dependia do meu próprio esforço, da minha compreensão das letras convertidas em palavras, agrupadas em sentenças e que se transportavam para a minha mente através dos movimentos sutis e sincronizados de dedos. Os significados contidos naquelas páginas ecoavam muito além da mensagem daquele enredo perfeito e bonitinho. Senti que minha vida mudaria para sempre.
De estudante à professora, não demorou muito para eu descobrir que o Braille havia me dominado. Conheci os meus alcances, esqueci que havia limites. Nem todas as barreiras comunicacionais estavam resolvidas, mas o Braille me permitiu atravessar com segurança os abismos para o acesso à informação de maneira autônoma e independente. Quis muito que minhas mãos fossem portadoras desse conhecimento e assim fiz da educação o meu sacerdócio.
Nesses quase quinze anos de profissão, experimentei muitos recomeços. Alguns que me colocaram frente a frente com o desafio de construir pontes para o conhecimento, outros, com a missão de quebrar as muralhas do preconceito. A minha sala de aula não está entre quatro paredes, mas em qualquer dos instantes em que permitimos transformar realidades ao nosso redor. Por isso ainda me emociono todos os dias com a reação dos alunos ao se depararem com a possibilidade de viver além dos limites da falta da visão.
Foi durante esta semana que mais enredos preencheram o roteiro da minha existência. Sim. Eu ainda me surpreendo com a reação de encanto demonstrada em cada sorriso daqueles alunos, porque compartilho com eles das mesmas vontades, de estar em um lugar onde possam contemplar a plenitude de sua essência, sem se importarem com barreiras. Senti que traziam consigo a esperança, que estavam experimentando a liberdade, uma liberdade revestida de confiança em si mesmos. Descobriram letras soltas, estantes de livros, máquinas, mas descobriram, acima de tudo, que são capazes de escrever seus futuros.
Que bonito é ver o quanto se encantam com as pilhas de livros na estante, apenas porque aquelas brochuras revelam muito da identidade de uma pessoa cega. A força com que seguram os materiais com entusiasmo de um aprendiz para descobrirem os pontos das letras em Braille. Os ouvidos atentos Às explicações e o quanto se empolgam ao escreverem o próprio nome, porque serão capazes de ler. É a descoberta de quem realmente são.
Que sejamos o recomeço a cada dia para que nos encantemos com a simplicidade daquelas manifestações de felicidade e encanto, de vontade e gratidão. Porque num mundo absolutamente tecnológico, o que ainda nos toca é a incrível capacidade de decifrar os sonhos pelas pontas dos dedos.
Luciane Molina é pedagoga, braillista e pessoa com deficiência visual. Possui pós-graduação em Atendimento Educacional Especializado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e em Tecnologia, Formação de Professores e Sociedade pela Unifei (Universidade Federal de Itajubá). Sua trajetória profissional inclui trabalhos com educação inclusiva, ensino do sistema Braille, da tecnologia assistiva, do soroban e demais recursos para pessoas cegas ou com baixa visão, além de atuar desde 2006 com formação de professores. Foi vencedora do IV Prêmio Sentidos, em 2011, e do IV Ações Inclusivas, em 2014, ambos pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo (SEDPCD-SP). Também é palestrante e co-autora do livro Educação Digital: a tecnologia a favor da inclusão. Atualmente, integra a equipe técnica da Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do Idoso de Caraguatatuba (SEPEDI), com ações voltadas para a comunicação inclusiva, políticas públicas para pessoas com deficiência visual e Núcleo de Apoio às Deficiências Sensoriais.
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