Sobre como os cegos aprendem, vou fazer uma breve explanação para que possamos compreender o mecanismo de aquisição de conceitos não visuais por quem depende dos outros sentidos para explorar o mundo.
A cegueira, como uma deficiência sensorial, exclui cerca de 80% dos estímulos externos, responsáveis pela construção simbólica dos elementos presentes ao redor de uma pessoa. Quando os “olhos” captam as imagens, o cérebro é capaz de interpretá-las de uma forma ampla e global. Os elementos como cor, tamanho, forma, distância, profundidade, brilho, etc., são essenciais para o entendimento de um cenário, com relações simultâneas de espaço e direção.
Uma pessoa que nasceu sem enxergar não vai construir um repertório simbólico através da visão. As percepções imagéticas dependerão de elementos concretos, percebidos e analisados através dos sentidos remanescentes. Ela só vai compreender o que é um triângulo retângulo, por exemplo, se for incentivada a pegar um objeto com esse formato. Ou ainda, se for submetida a situações que remetam ao conceito já internalizado por meio de alguma outra experiência concreta.
Quanto maior for o repertório imagético construído ao longo da vida da pessoa cega, melhores serão as situações de aprendizagem desvendadas através da abstração. Depois que o simbólico foi instalado, as referências são automaticamente consultadas na memória, facilitando a resolução de problemas e a criação de hipóteses.
O desafio da semana foi ensinar “Teorema de Pitágoras” para uma aluna cega. Se esse já é um tema complexo para qualquer estudante, para um estudante cego não seria diferente. Basicamente, eu precisaria de um quadrado dividido ao meio, na diagonal. Mas não só isso…
Segurando um triângulo retângulo, pudemos identificar os catetos e a hipotenusa, compreender o ângulo reto, entender o que são vértices e até inserir o conceito de perpendicular e inclinado. Mas ao aplicar a fórmula a²=b²+c², como mostrar ao aluno o que significa quadrado dos catetos e quadrado da hipotenusa?
Utilizei, para isso, um material muito bem elaborado por alunos do curso de licenciatura em Matemática do Instituto Federal de Caraguatatuba. Eles construíram em isopor um triângulo retângulo, com caixinhas quadradas, onde cabem exatamente a quantidade de bolinhas de gude para calcular a medida dos catetos ao quadrado e a medida da hipotenusa ao quadrado. É fantástico! Além disso, precisei ensinar toda a simbolização Braille para o registro da fórmula e, consequentemente, para a resolução da mesma.
Também utilizei movimentos do próprio corpo para mostrar como formar ângulos retos ao dobrar o joelho e cotovelo, por exemplo. Noções construídas, elementos simbólicos internalizados, chegou a hora de colocar tudo isso em prática na resolução dos problemas. Vejamos:
“Uma escada de 10 metros de comprimento está apoiada sob um muro. A base da escada está distante do muro cerca de 8 metros. Determine a altura do muro”.
Novamente o repertório imagético precisou entrar em ação. Em primeiro lugar, noção de distância. Quanto mede 8 metros? Muitas pessoas cegas não conseguem ter a noção exata de distância justamente por não enxergarem profundidade. Interpretar um problema exige conhecimento dos elementos simbólicos e, neste caso, um conhecimento mais real da situação.
Eu não tinha uma escada naquele momento para contextualizar o problema. Simplesmente peguei um cabo de vassoura, posicionando-o inclinado entre a parede e o chão. O cabo da vassoura funcionou como um corrimão de uma escada imaginária. O encontro entre a parede e o chão formou um ângulo reto e aí foi só aplicar a fórmula para descobrir que a altura do muro deveria ser de 6 metros.
“As extremidades de um fio de antena totalmente esticado estão presas no topo de um prédio e no topo de um poste, respectivamente, de 16 m e 4 m de altura. Considerando-se o terreno horizontal e sabendo-se que a distância entre o prédio e o poste é de 9 m, o comprimento do fio, em metros, é”.
Foi um pouco mais complexo, pois também tive que construir um cenário usando uma caixa retangular para representar o prédio, uma caneta para representar o poste e barbante para esticar o fio da antena. O conceito de extremidade também precisou ser bem trabalhado, assim como a do terreno horizontal. Ficou muito mais simples descobrir que o comprimento do fio é de 15 metros.
Com um pouco de criatividade e improviso, a matemática vai se construindo e se fazendo presente no diaadia das pessoas com deficiência visual. Porém, ainda é bastante comum encontrar alunos isolados dentro da sala de aula porque o professor desconhece que um simples apontamento não contribui para a compreensão dos conceitos. Trabalhar com desenhos pode ser menos desafiador, mas transportar as situações para o concreto faz com que toda a turma aprenda e apreenda melhor. A construção de esquemas imagéticos e a abstração do concreto não é habilidade que deva ser explorada apenas por quem não enxerga. Para essas pessoas, o simbolismo é o único caminho para chegar ao resultado. Mesmo partindo da audiodescrição, narração da cena, é preciso compreender qual imagem será formada através do que se ouve e então buscar no repertório a imagem que se encaixa naquela situação.
Luciane Molina é pedagoga, braillista e pessoa com deficiência visual. Possui pós-graduação em Atendimento Educacional Especializado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e em Tecnologia, Formação de Professores e Sociedade pela Unifei (Universidade Federal de Itajubá). Sua trajetória profissional inclui trabalhos com educação inclusiva, ensino do sistema Braille, da tecnologia assistiva, do soroban e demais recursos para pessoas cegas ou com baixa visão, além de atuar desde 2006 com formação de professores. Foi vencedora do IV Prêmio Sentidos, em 2011, e do IV Ações Inclusivas, em 2014, ambos pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo (SEDPCD-SP). Também é palestrante e co-autora do livro Educação Digital: a tecnologia a favor da inclusão. Atualmente, integra a equipe técnica da Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do Idoso de Caraguatatuba (SEPEDI), com ações voltadas para a comunicação inclusiva, políticas públicas para pessoas com deficiência visual e Núcleo de Apoio às Deficiências Sensoriais.
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