Por José Aurélio Pereira e Grazi Staut
Seguindo a ordem do sorteio feito pelo Portal O Lorenense, apresentamos hoje a entrevista com o pré-candidato a prefeito de Lorena, Daniel Munduruku. Antes de tudo, este veículo de comunicação pede desculpas a você, lorenense, pelo atraso na publicação desse bate-papo. Devido à cobertura dos fatos relacionados à prevenção e combate do coronavírus na cidade e à procura da população por informações (estamos atendendo e tentando esclarecer a todos), não foi possível divulgá-la antes. Mas vamos ao assunto:
Autor de 56 livros que circulam pelo mundo inteiro, engajado no movimento indígena, membro da etnia Munduruku. Este é o professor Daniel Munduruku, o nome mais recente entre os 4 pré-candidatos à Prefeitura de Lorena. Filiado ao PC do B e assumidamente identificado com a esquerda: “Quando a gente pensa nos direitos humanos, os direitos que a esquerda conseguiu emplacar dentro da sociedade, quando a gente percebe que essa esquerda foi quem trouxe visibilidade às pessoas mais simples e trouxe possibilidade delas se realizarem como pessoas, como indivíduos… Isso pra mim é o suficiente para ter a certeza de que eu estou em um lado que me contempla”. Ele encaixou a conversa com Portal O Lorenense em uma agenda ocupada por cursos ministrados a professores e palestras. “A nossa proposta é baseada justamente na cultura, nas vozes daqueles que não tiveram voz”, afirma. “Lorena foi uma das últimas cidades a libertar os escravos e eles continuam, de uma certa maneira, escondidos. Eles continuam aí, nos seus lugares, mas será que nós não temos que ouvi-los?”
Munduruku promete uma administração participativa, como em uma grande teia, em que todos possam contribuir e cuidar uns dos outros. Tem uma visão inclusiva em relação à cultura e acredita nela como solução para grande parte dos problemas da sociedade, inclusive na área da segurança pública. A seguir, o bate-papo com Daniel Munduruku, na íntegra:
O Lorenense – O que Lorena pode esperar do senhor?
Daniel Munduruku – Em primeiro lugar, eu queria dizer que é uma satisfação participar desse momento de pleito nessa cidade. Eu acho que, a gente que se propõe a fazer um trabalho público, a nossa primeira postura tem que ser a de servir; servir ao povo. Efetivamente, quem nos chama pra fazer algum tipo de prestação de serviço é esse povo. E eu posso garantir que o povo de Lorena pode esperar de mim muito trabalho, muita atenção, muito ouvir. Se eu posso prometer alguma coisa pra esse povo, é exercitar aquilo que aprendi desde a minha infância, desde a minha vida lá no meio da Floresta Amazônica, que os meus antepassados – meus avós, meus tios – sempre me ensinavam: a arte da escuta. A arte da escuta é necessária, primeiro, como elemento de sobrevivência: quem vive na floresta precisa estar atento aos sons daquilo que a floresta nos apresenta. Mas também ouvir a memória das pessoas, ouvir as histórias das pessoas.
Nós, que vivemos numa tradição ancestral, aprendemos a ouvir histórias; e a gente ouve essas histórias pra aprender como nós devemos nos articular com a vida. Por uma questão de sobrevivência sempre, mas também por uma questão de manutenção do equilíbrio: do nosso equilíbrio pessoal e do equilíbrio da própria natureza e do lugar onde vivemos. Então, é um pouco disso que venho procurando fazer na minha própria vida… Perceber como me articular dentro dessa sociedade, pra que dela eu tire o que ela pode de melhor me oferecer. E hoje eu vejo que aquilo que eu recebi dessa sociedade – sociedade brasileira, eu digo, mas também da sociedade lorenense –, eu desejo dar de volta. Desejo oferecer o meu melhor, porque foi o melhor que eu consegui nessa minha trajetória, que é aprender, e aprendi a partir das minhas próprias experiências, a partir da minha própria caminhada nesse universo, a partir do meu próprio interesse – claro, um grande esforço que fiz, mas um esforço que não foi em vão. E eu acho que, hoje, estou devidamente preparado pra devolver todo esse aprendizado pra sociedade lorenense. E de minha parte, posso garantir que eu vou oferecer aquilo que eu tenho de melhor: o meu conhecimento, minha experiência, o meu desejo de servir e, naturalmente, a minha entrega… porque eu não estou buscando um emprego. Não estou buscando um cargo por conta de um emprego. Estou, ao contrário, deixando de fazer aquilo que eu sempre fiz… de escrever, de produzir, de criar, para me colocar a serviço dessa sociedade. É isso que Lorena pode esperar de mim.
O Lorenense – Você já ocupou algum cargo público ou é a primeira vez que você está concorrendo?
Daniel Munduruku – Eu nunca tive nenhum cargo público, em lugar nenhum, a não ser, é claro, como professor. É a primeira vez que eu concorro a um cargo público como político. Aliás, até muito recentemente, eu não era filiado a nenhum partido. Eu entrei no PC do B justamente com o objetivo específico de fazer essa caminhada rumo à Prefeitura de Lorena.
O Lorenense – O PC do B é um partido tradicionalmente de esquerda. Só que a gente vê aí uma esquerda maculada por muitos escândalos de corrupção. Você teme ter a sua imagem atrelada a uma esquerda que o brasileiro quer esquecer? A gente tem até um elemento interessante, que é o fato de 72% do eleitorado aqui de Lorena ter preferido um político de extrema direita, como é o nosso presidente da República. Como você se vê dentro desse cenário: uma pessoa que está se lançando candidata, dentro de um partido tradicionalmente esquerdista, e num contexto político em que a esquerda está manchada. Como você vê isso?
Daniel Munduruku – Pra mim, isso é muito simples de responder, na verdade. Porque quando se faz essa separação entre direita e esquerda, cai também numa incompreensão do que é a história. Quando a gente pensa nos direitos humanos, os direitos que a esquerda conseguiu emplacar dentro da sociedade, quando a gente percebe que essa esquerda foi quem trouxe visibilidade às pessoas mais simples, quando a gente pensa que essa esquerda foi quem trouxe possibilidade das pessoas se realizarem como pessoas, como indivíduos… Isso pra mim é o suficiente para ter a certeza de que eu estou em um lado que me contempla, que contempla as minhas próprias angústias pessoais, que contempla as lutas políticas que eu tenho feito, que contempla a minha ação como cidadão, como alguém que protege e que busca a proteção dos direitos das pessoas, dos direitos dos povos indígenas, dos direitos da natureza, da floresta continuar “de pé”… Então, quem tem feito isso efetivamente são as esquerdas.
Obviamente que a gente não vai concordar com corrupção, com roubalheira, porque a gente fala da esquerda, mas a direita sempre fez isso. E quando as pessoas falam de um candidato que se propõe a sair pela esquerda, as pessoas querem saber o partido, mas ninguém procura saber os partidos das outras pessoas… porque normalmente, mesmo em Lorena, tem sido assim: as pessoas votam nas pessoas, não em partidos. As pessoas não querem saber o partido do fulano, mas quando a gente se propõe a ser de esquerda, a pessoa imediatamente quer saber qual o partido, como se isso fosse determinante para aquilo que você pretende realizar.
O Lorenense – Você acha que isso tem a ver com o histórico recente do País?
Daniel Munduruku – Isso tem a ver com o histórico recente, mas tem a ver também com o excesso de informação, às vezes não tão verdadeiro, que foi jogado dentro da sociedade. Obviamente, se culpou a esquerda por uma porção de coisas, mas nunca se culpou a direita por outras tantas porções de coisas erradas… porque essa coisa de corrupção não é uma novidade, né?! Essa coisa de roubar o erário público não é algo que a esquerda inventou agora.
Houve sim, uma tentativa de forçar a sociedade brasileira a abrir mão de seus direitos. Isso que me causa uma certa tristeza, inclusive… como militante dos direitos humanos, por exemplo… Eu perceber que as pessoas foram forçadas a abrir mão dos seus direitos conquistados, direitos que estão na Constituição, inclusive; e que agora está sendo uma tentativa de fazer uma revisão a uma Constituição que eu considero muito cidadã, porque ela fez com que todos os brasileiros fossem devidamente contemplados, fossem atingidos, fossem responsáveis e criassem o sentido de pertencimento.
Agora, nos últimos anos, quando se fez toda essa crítica a um tipo de governo, é que um determinado setor da sociedade, insatisfeito justamente porque o pobre teve acesso à universidade, porque o pobre teve melhores condições de vida, porque o pobre pôde ter uma renda melhor pra viver… se criou então uma celeuma, se criou um culpado, se criou uma forma de olhar pra essas esquerdas. Então, nesse sentido, eu tenho muito claro… tenho uma leitura de sociedade que, pra mim, é muito clara. E eu nem faço essa separação do bom e do mal, da direita e da esquerda, do homem de bem, como alguns falam, da família. Eu não faço essa leitura porque ela não contempla as pessoas. Ela contempla interesses; e os interesses é que falam mais alto do que o desejo das pessoas.
Eu costumo dizer que o Brasil não é, por exemplo, a favor que destruam a Amazônia, mas ele está sendo levado a pensar que é a favor. E isso é um trabalho que está sendo o tempo inteiro tramado. É um debate, um combate, um embate entre essas forças justamente pra convencer a sociedade que o indígena não tem direito à terra, que a floresta é desnecessária, que é mais interessante explorar o minério. Então, a sociedade é levada a pensar dessa maneira.
O Lorenense – A queimada na Amazônia está acontecendo?
Daniel Munduruku – É claro, mas é claro que está acontecendo! Os indígenas estão sendo perseguidos, aldeias estão sendo queimadas por invasores! Esses indígenas, pra citar um exemplo, deveriam ser cuidados pelo Estado Brasileiro, mas o Estado Brasileiro está incentivando para que haja esse tipo de violência contra os indígenas. Então, eu que trabalho, que lido com educação o tempo inteiro, viajo o Brasil inteiro fazendo formação de professores, percebo exatamente isso: que as pessoas não são contrárias aos direitos todos: humanos, trabalhistas… Elas simplesmente são conduzidas a aceitar essas reformas porque alguém está dizendo que esta é a saída, que essa é a alternativa. Só que não! As pessoas estão sendo manipuladas, estão sendo levadas a acreditar que a alternativa do Brasil é o crescimento e desenvolvimento… só que não! Essa é uma questão pensada, claro, lá nas altas esferas econômicas, e que não chega, na verdade, na população. A população do Brasil não é feita dessa gente.
O Lorenense – Você é fruto de uma comunidade indígena. A gente pode dizer que você é uma minoria dentro dessa comunidade que atingiu o posto e a formação que você tem. Você é pós-doutor, é formado por uma universidade pública. Você pensa que pode contribuir com a educação pública também? Dado o fato de que você saiu de uma parte da população e teve toda essa trajetória, imagino que por esforço próprio; e que tenha sido até desfavorecido em relação a muita coisa. Como você vê a sua contribuição nesse sentido na educação?
Daniel Munduruku – Bem, eu acho que fiz um caminho pessoal que foi acontecendo… É claro que eu venho de uma tradição que é antiga e é do presente, sabe?! As pessoas entendem muito pouco o que é um povo indígena. Normalmente, o que nós temos na sociedade brasileira é uma visão estereotipada, que cai no folclórico. As pessoas não conhecem e não sabem quem nós somos. Aliás, eu costumo dizer que essa palavra “índio”, que é usada para nos identificar, é uma palavra que diz muito mais sobre o que as pessoas pensam de nós, do que sobre quem somos de verdade. É uma palavra que folcloriza e coloca nossas populações dentro de uma situação de inferioridade, inclusive.
As pessoas, portanto, não aprenderam quem nós somos, porque elas não nos ouviram. Elas ouviram sempre a história narrada por aqueles que são considerados vencedores. Aqueles que vencem a guerra normalmente são aqueles que contam a história; e por isso, contam vantagem na história. Nós dizemos sempre que “quem conta um conto, aumenta um ponto”, justamente pra dizer que, aquele que narra, está sempre narrando a partir do seu ponto de vista.
Então, os indígenas nunca tiveram o lugar da fala, pra usar um termo que é muito comum hoje. Nunca tiveram um lugar respeitado, onde eles pudessem se posicionar e informar às pessoas: quem são esses indígenas? Como vivem? Será que a forma de viver é tão diferente da forma de viver de um ocidental? E se é diferente, é possível que essas formas de vida convivam? Porque no final das contas, tudo tem a ver com como nós nos vemos no mundo, como smos e como nos posicionamos nesse mundo que a gente vive. É claro que os sistemas ideológicos, o sistema capitalista, o socialista… todos esses sistemas vão naturalmente dando vazão a opiniões para que o debate aconteça. Mas os indígenas que não se encaixam nem no socialista e nem no capitalista acabam sendo vitimas preferenciais, às vezes, desses sistemas.
O Lorenense – Aqui em Lorena, temos você como representante indígena. Porém, a população indígena, se é que existe na cidade, não é tão expressiva, certo? Quem você considera que é a minoria da população dessa cidade que você pretende administrar; e como atingir essa minoria e contribuir para que ela tenha fala?
Daniel Munduruku – Então, justamente isso. Ouvir de uma sociedade sem o lugar da fala, é que eu vejo que é uma possibilidade única da gente começar do lado contrário. Contar a história sob outra ótica, outra vertente, outra maneira de olhar pra ela. Por exemplo, na história de Lorena, não aparecem indígenas, embora aqui nesse entorno todo… aliás, como em todo o Brasil, isso é território indígena, ancestralmente indígena. Mas na história, não se conta isso. Conta-se que aqui é a terra das palmeiras imperiais, terra de condes e barões, não é assim que fala? O nosso hino conta isso, mas essa terra não é de condes e barões. Essa terra aqui é das pessoas que produzem nela, é um lugar onde as pessoas vivem e que não precisam ter senhores. Ela não precisa ser constituída de senhores. Ela é constituída de cidadãos, de gente, e essa gente precisa ser trazida à tona. A idéia que nós temos de desenvolver uma política para Lorena é poder trazer à tona justamente essas vozes silenciadas. Afinal de contas, onde estão os negros desta terra? Lorena foi uma das últimas cidades a libertar os escravos e eles continuam, de uma certa maneira, escondidos. Eles continuam aí nos seus lugares, mas será que ainda não temos que ouvi-los?
O Lorenense – Agora, que projeto você tem nas mãos para a valorização da cultura lorenense?
Daniel Munduruku – A nossa proposta é baseada justamente na cultura, na possibilidade de dar voz àqueles que não tiveram voz. E como a gente faz isso? A gente está pensando e trazendo para Lorena a visão da cidade teia. E uma teia se forma com um único fio; e a partir daí, ela vai sendo costurada por uma aranha, de modo que dá um formato harmônico para aquilo que, depois, ela tira de dentro dela. E a idéia que a gente tem é de fazer com que nessa cidade aqui, um dê a mão para o outro. Que nós possamos pegar a pessoa que tem pouco acesso à cultura formal e que ela possa também se manifestar, trazendo aquilo que ela tem de valor cultural dentro dela; e oferecer a oportunidade dessas pessoas participarem também de outro tipo de cultura. Então, não ficar muito nessa coisa: “a Festa da Padroeira que é a festa da cidade?” Não! E as outras festas? E os outros terreiros que existem? E as outras denominações que existem? E os outros cantos que a gente não escuta? A idéia que a gente tem é poder apresentar as manifestações que a cidade tem e ficam ocultas… Ou às vezes, o que me parece triste, dá a impressão que, quando a elite de Lorena permite, essas manifestações acabam se mostrando. Aí, depois que elas se apresentam, somem de novo e ficam um tempão fora.
O Lorenense – Inclusive, o turismo religioso é muito forte em toda a região, a partir de Aparecida. Depois vem pra Guará, pula-se Lorena e vai pra Cachoeira Paulista. Existe até uma preocupação da atual administração e de um dos pré-candidatos com essa questão. Agora, quando a gente fala de turismo religioso, a gente fala muito da limitação em relação ao cristianismo, ao catolicismo. E você está falando que a sua idéia de exploração cultural é uma coisa mais abrangente. Como aliar essa inclusão de Lorena no circuito do turismo religioso: sem diversificar, como é a sua visão do que acontece… ou diversificando, que é o seu ponto de vista, dando oportunidade para todo mundo mostrar a sua própria crença?
Daniel Munduruku – Eu tenho a impressão que o turismo religioso não é exatamente um produto econômico, no caso de Lorena. Primeiro porque existem aqui dois polos muito fortes, que são Aparecida e Cachoeira Paulista, e que já contemplam as pessoas que vêm de outros lugares para cá. Quem vem para essa região, vem para Aparecida, eventualmente passa em Guará, por causa de um santo brasileiro… Mas cá entre nós, santos brasileiros também não dizem muita coisa, porque a nossa cultura não é de aceitar brasileiros. E depois, em Lorena, nós temos um Santuário de um santo preto, que acaba também sendo deixado de lado. De uma certa forma, as pessoas passam aqui, quando muito, olham e vão embora. Hoje, o que o turista tem pra fazer em Lorena efetivamente? Absolutamente nada! Então, a minha idéia é aproveitar isso como linguagem de cultura, pensar a cultura como economia, e aí tentar elaborar projetos que façam Lorena entrar num outro circuito turístico, que é o cultural. Por exemplo, a idéia nossa é fazer festivais de literatura, feiras de livros, que dão muito certo em todos os lugares… Temos Paraty, aqui perto, que nos dá esse exemplo. Podemos fazer também festivais de música, de teatro, essas coisas todas…
O Lorenense – O sincretismo aqui em Lorena é muito fraco e o catolicismo é muito forte, por conta dessa tradição mais elitizada. É assim que você vê?
Daniel Munduruku – Eu não vejo assim. Existe um sincretismo sim, mas por força do catolicismo elitista, que existe, esse sincretismo foi jogado para as periferias. E aí, por exemplo, nós não ouvimos falar de terreiros de umbanda em Lorena. Eles estão absolutamente escondidos, mas existem… vários! Existem vários grupos que lidam com isso. A gente trata muito mal a capoeira, por exemplo, que faz parte de uma manifestação desse sincretismo todo e que a gente não vê presente em Lorena. Ou então, quando vê, é naquele momento, como eu dizia antes: você abre o espaço, parece que agora eles entram, depois vão embora e tudo volta ao normal, né?! E interessante que Lorena, por exemplo, no turismo católico, o público está cada vez menor. E existe um público evangélico que está crescendo muito mais fortemente.
O Lorenense – A Renovação Carismática surgiu na década de 70, nos Estados Unidos. O precursor da Renovação Carismática do Brasil, associado ao padre Jonas, que é o norte-americano padre Eduardo, fundou a Canção Nova bem perto daqui. E Lorena é um município de maioria católica. Isso dificulta a sobrevivência de outros movimentos de cunho sincretista?
Daniel Munduruku – Então, eu acho isso sim… E é um fenômeno sociológico, não tem nada a ver com você acreditar mais nisso ou naquilo. Não se trata de questão de fé e sim de sociologia. Sociologicamente falando, o fenômeno religioso é amplo e diversificado. E é claro essas forças estão o tempo inteiro em embate… e o tradicionalismo acontece aqui, tanto é que as festas maiores são católicas.
O Lorenense – Levando esse tradicionalismo para a política, ele acaba fazendo com que a maior parte do eleitorado seja de direita? Ou não tem nada a ver?
Daniel Munduruku – Eu acho que não tem nada a ver. Na verdade, os cristãos, de uma maneira geral, são todos gente boa… tudo gente que quer comunhão, que quer participar, estar junto. É um povo solidário, de uma maneira geral. Agora, eles são muito mais suscetíveis às políticas e, às vezes, se deixam conduzir por aqueles que têm interesses aqui e ali, de um lado e de outro. A gente vai ouvir muito esse discurso religioso nas próximas eleições, justamente porque é um discurso que vai pegar o público evangélico, os eleitores evangélicos…
O Lorenense – É, o público religioso também está dividido entre direita e esquerda… Agora, a política é muito enviesada por conta do interesse particular de cada um. Lorena tem um comércio forte e, por essa razão, o liberalismo econômico talvez dê um norte para o raciocínio político do eleitorado daqui. Você concorda?
Daniel Munduruku – Eu acho que sim. Inclusive, certamente que esse vai ser o discurso de outros políticos. Eles vão estar o tempo todo postando e prometendo que vão aumentar o emprego, que vão formar pessoas, criar cursos profissionalizantes, vão incentivar e tal… Tudo isso vai aparecer, porque é um discurso que agrada, porque as pessoas foram levadas a pensar dessa maneira… que é essa história da meritocracia, do esforço individual, da gente lutar para conquistar nossos objetivos na vida… É um pouco o discurso da autoajuda, sabe?! Que “nós podemos tudo, e que vamos adiante” e etc… Esse discurso está muito difundido e difuso dentro da juventude. Obviamente que as pessoas não estão pensando de uma forma muito clara sobre o que pode ser esse tal de liberalismo econômico, essa tal da meritocracia. Eu não acho que nós temos méritos. Eu acho que nós temos sim, talentos, temos dons, e esses dons podem se manifestar na gente de maneira diferente. Porque a meritocracia normalmente nos leva ao egoísmo… porque quando a gente diz que mereceu algo, é porque a gente pisou em alguém, porque a gente deixou alguém para trás, teve que passar a perna em alguém… O mérito quase sempre está ligado a essas questões; à questão do eu, do indivíduo.
Eu venho de uma sociedade que é o coletivo; e no coletivo, ninguém passa fome. Aqui, as pessoas que pensam ser melhores, que se acham merecedoras do sucesso e da riqueza, elas pisam nos outros e criam a pobreza, geram pobreza. Numa sociedade comunitária, não existem pobres. Basta a gente ver também isso na zona rural, onde existe muito mais essa solidariedade.
O Lorenense – Falando em zona rural, qual é o bairro que merece mais atenção?
Daniel Munduruku – Olha, eu acredito que de uma maneira geral, a zona rural é muito mal atendida pelo poder público. E faz parte da nossa teia não deixar ninguém de fora.
O Lorenense – Pelo que você mapeou, de bairros rurais, o que realmente precisa de mais atenção?
Daniel Munduruku – Francamente, a gente tem algumas informações sobre as necessidades e as dificuldades que essa zona rural tem. O que a gente pretende efetivamente é criar um cinturão rural, que permita a gente desenvolver políticas de incentivo. Por exemplo, uma agricultura familiar, uma agricultura produzida na cidade e que possa vir para a própria cidade, para as feiras livres, mas usando aí um outro dinamismo de feira livre, inclusive.
O Lorenense – Você vai aos bairros rurais?
Daniel Munduruku – Sinceramente, visitar como político, não. Eu sempre fui de andar pela cidade, pela roça, pelos lugares… mas como alguém que vai lá procurar consumir alguma coisa. Mas como político, procurando problemas e dificuldades, ainda não deu tempo.
O Lorenense – Agora vamos falar da questão do emprego… Como é que uma visão socialista cria empregos? Porque do ponto de vista pragmático, seria trazer investimentos e empresas para Lorena, oferecendo incentivos de impostos e aquela coisa toda… É essa a sua visão? Como você traria empregos para Lorena?
Daniel Munduruku – Eu acho que essa coisa da industrialização, que as pessoas normalmente defendem, ela na verdade… nós vivemos em uma época em que a industrialização é vazia, porque ela não gera mais emprego. A industrialização gera pouco. O mercado de trabalho acaba sendo muito pouco usado pela industrialização, justamente por causa da mecanização, da tecnologia… Hoje, você abre uma empresa aqui e, com cinco empregados, você toca essa empresa.
Agora, eu vejo, por exemplo, na indústria cultural, um forte elemento para a criação de empregos. Quando eu falo de trazer festivais, de trazer literatura, de trazer cultura, de trazer esporte e desenvolver uma cultura que valorize o município, mas valorize também os munícipes, eu acho que a gente cria muito mais trabalho e cria frentes de trabalho, frentes de emprego, e cria também um comércio informal, que só vai ajudar a cidade a crescer.
Eu imagino que festivais, de uma maneira geral, eles trazem muito mais ganho para a cidade do que, por exemplo, o turismo religioso, onde as pessoas não ficam aqui; as pessoas só estão de passagem… Mas se você cria um festival com uma programação intensa, que inclua inclusive o religioso, você vai obrigar a pessoa a se hospedar aqui, a se alimentar aqui e ficar aqui um tempo maior. Gera muito mais e, sobretudo, prepara as pessoas, porque o que eu vejo acontecendo em Lorena e em muitas outras cidades, mas em Lorena em especial… é que nós não temos público. Lorena é uma cidade sem público para teatro, para cinema… porque a gente não educou as nossas crianças a gostarem de teatro, de cinema e de outras linguagens artísticas. Então, eu imagino que se a gente pode criar técnicos e agentes culturais que trabalhem com essas artes, nós vamos não apenas mandar esses técnicos pra fora, como acontece hoje, porque quando se formam, não tem emprego aqui… mas a gente vai poder aproveitar essa mão de obra na própria cidade.
A intenção da gente, se tudo correr bem, é criar mesmo uma estrutura de atendimento e formação de jovens para o setor da cultura. Eu parto daí. Eu acho que nós geraremos muito mais emprego trazendo e criando a economia da cultura do que efetivamente, simplesmente cedendo espaço para empresas criarem; e quando eles não têm mais nada para fazer aqui, eles abandonam e a gente fica aí, com esses prédios que são inúteis pra gente.
O Lorenense – Um dos maiores problemas que Lorena enfrenta é a questão da segurança. A gente sabe que segurança é uma matéria muito mais do governo estadual. Mas como você pretende, como administrador municipal, interferir nessa questão e oferecer algum tipo de contribuição?
Daniel Munduruku – Então, mais uma vez, eu digo que o trabalho, a novidade que a gente quer trazer, é justamente que as pessoas criem o sentimento de pertencimento a esse lugar. Criar esse sentido de pertencimento é saber que todo mundo cuida de todo mundo, que todos tomam conta desse espaço. Criar um espaço educativo, em que as pessoas se sintam seres humanos, ainda mais, e tomem conta umas das outras. Então, pensar a educação, a saúde e a segurança como um único movimento. Eu não sou do tipo de pessoa que acha que saúde é um departamento à parte da educação, ou à parte do esporte, ou à parte de qualquer coisa.
Como eu disse, venho de uma sociedade de pensamento circular. E essa sociedade pensa o tempo inteiro no conjunto, no todo. Então, é possível criar um sistema de segurança em que as pessoas efetivamente tomem conta disso. Por que achar que a força policial é capaz de resolver tudo? Ela não vai resolver. Porque as pessoas não precisam de polícia. As pessoas precisam de poesia, precisam de festa, de alegria, de esperança, de sonhos… Elas precisam ter alguma razão para existir. E quando tem isso, a criminalidade baixa. Vamos ter menos violência.
Portanto, a gente vai distribuir essa capacidade de humanizar as pessoas a partir de uma política de educação, de formação, de saúde, de coletividade, envolver as associações de bairro e a cultura lorenense nisso. Eu acho que é a melhor solução.
Eu não sou favorável à militarização das coisas. Eu não sou favorável a criar escolas militares, a prender crianças, a diminuir a maioridade penal… Eu sou favorável à liberdade completa das pessoas. E a gente tem que criar esse sentido de liberdade nelas. Se a gente não cria, é claro: elas vão estar sempre achando que precisam do policial para proteger. O policial, óbvio, é importante na sociedade que a gente vive. É óbvio que uma parceria constante de Prefeitura com as polícias é fundamental pra gente manter, inclusive, aquilo que é público, aquilo que é de todo mundo. É pra isso que tem que servir a Guarda Municipal, não pra jogar spray de pimenta na cara das pessoas! Ela tem que cuidar. E todo cidadão tem que ser assim! Toda a nossa relação humana tem que ser baseada no afeto, na comunhão, na possibilidade da gente conviver junto, independente se a gente pensa diferente, mas conviver de maneira pública sem ter que esconder uns dos outros. E aí a gente poder trocar mais, porque é nessa troca que a gente aprende, que a gente cresce.
O Lorenense – Você fala de pertencimento. Tem um trecho de um texto seu que fala o seguinte: “o Brasil precisa se reconciliar com a sua história e aceitar que foi construído sobre um cemitério”. Me corrija se eu estiver errado, mas eu entendo, aqui, uma visão segundo a qual duas culturas não podem subsistir. Quer dizer: para uma cultura ser criada, a outra tem que morrer. Por isso que o Brasil foi construído em cima de um cemitério: o Brasil dos portugueses foi construído em cima do cemitério dos indígenas. Está correta essa visão? Como você vê duas culturas subsistindo juntas, dado o fato de que você fala muito em diálogo e pertencimento?
Daniel Munduruku – Essa visão de integração que sempre existiu e que hoje ainda é repetida mil vezes pelo atual mandatário em Brasília, leva as pessoas a acharem que uma tem que suprimir a outra. A história do Brasil é construída efetivamente em cima de encontros e desencontros dessas culturas. A cultura européia que chega, mas que depois é, de uma certa forma, suplantada pela própria presença indígena, que tem que ensinar os europeus a viver nesse lugar que eles não conheciam. E depois a cultura africana, que vem e traz também a sua cultura, a sua forma de ver o mundo… e é isso que forma o Brasil.
Só que esse Brasil, antes dele aparecer enquanto nação e enquanto cultura, foi tendo que se sacrificar – digamos assim, pra ser mais suave… muitos povos tiveram que se sacrificar para que essa sociedade, para que esse povo viesse à tona. Agora, o que é o Brasil? O que é o brasileiro? Quando eu falo que o Brasil não consegue se reconciliar com seu passado, é porque quando esse Brasil se olha no espelho, o que ele vê, ele não gosta. Porque o espelho reflete o que está atrás da gente. E esse Brasil que olha pro espelho, olha pra trás e o que é que ele enxerga? Negros e indígenas! E nós aprendemos pela tal da história única, da narrativa única, a não gostar nem de negros e nem de indígenas. E isso está muito claro em todos os estereótipos que criamos sobre os negros e indígenas. E preservamos um pouco, 10% de europeu, que é o que nos dá orgulho…
O Lorenense – Você falou disso e é verdade… Todos nós falamos da nossa ascendência e lembramos: portuguesa, espanhola, italiana, holandesa… Só que a gente realmente se esquece que, em nossas veias, tem negro, tem índio e enfim…
Daniel Munduruku – Mas esse é o Brasil que precisa ser resgatado com seu passado. O fato de eu estar aqui nessa cidade, longe do meu lugar… Estou há 33 anos aqui, mas eu não estou fora do meu lugar. Eu estou onde eu deveria estar! Vim para estudar, concluir meu curso. Aí fui ficando, ficando… Casei aqui, tive meus filhos… Morei um tempo em São Paulo e depois voltei pra cá.
O Lorenense – Você falou da administração mandatária lá em Brasília. E do mandatário aqui de Lorena, o que você vê de fragilidade na atual administração, que uma eventual gestão sua possa vir a solucionar?
Daniel Munduruku – Bom, eu tenho muita coisa a ver com o meio ambiente. Eu acho que aqui se pensa muito mal a questão ambiental. Tenho muito a ver com a questão cultural. Como eu falei, aqui sempre se pensa na cultura como… Aliás, não se pensa na cultura! Nós não temos um museu de memórias lorenenses. Nós temos aqui uma terra de grandes escritores e não é dada a mínima pra eles… Temos três academias de letras que gravitam sobre o próprio eixo… Mas por que isso acontece aqui? Porque não existe uma política pública efetiva que possa criar essa idéia do pertencimento.
O Lorenense – Então, você acha que a questão cultural é o principal problema que precisa ser solucionado?
Daniel Munduruku – É, eu diria que sim, porque é a cultura que nos dá autoestima. E Lorena sofre muito de baixa autoestima.
O Lorenense – Então, podemos fechar perguntando: em 2020, Lorena completa 232 anos. E em 2021, em um eventual primeiro ano de gestão Daniel Munduruku, Lorena vai completar 233 anos. Como será em novembro, no final do ano? O que esperar para essa comemoração do prefeito Daniel Munduruku?
Daniel Munduruku – Nós vamos reatualizar essa cidade, vamos colocar essa cidade para se autodescobrir. Vamos cavar a memória, criar um sentimento de pertencimento, trazer o povo de fato para o lugar dele, o lugar que ele merece. Vai ser certamente uma festa popular no sentido de trazer o povo às ruas. Não a essa praça, mas às ruas dessa cidade. Eu quero olhar a cidade como uma teia. Então, o que acontece aqui na Praça Principal tem que acontecer nos bairros, na roça e em todos os lugares.
Nós valorizamos, sobretudo, as crenças locais, as pessoas, as sabedorias… E queria finalizar dizendo assim: que um dos nossos compromissos é que a gente quer pegar os dois extremos como prioridade: a criança e o idoso. A criança porque ela é aquela que tudo pode; e tem que ser assim. E o velho é aquele que tudo sabe. E nós precisamos juntar esses dois extremos, para eles conversarem. Para que o velho se sinta empoderado, importante e valorizado; e essa criança perceba isso e cresça orgulhosa do seu lugar e se sinta parte dele. Então, a gente quer valorizar a voz da criança e a voz do idoso.
É claro, numa teia, nenhum fio é desimportante. Como dizem os sábios antigos, quando você quebra um fio da teia, a teia inteira corre o risco de desmoronar. E nós queremos uma administração como uma teia: vamos cuidar de todo mundo! Queremos olhar para todo mundo… E todo mundo significa todo mundo! E nós precisamos olhar para os velhos, para os cadeirantes… Nossa cidade tem a questão da mobilidade urbana muito complicada. Não temos ciclovias para uma cidade com tantas bicicletas. Nós não temos uma porção de coisas que precisam, até porque isso deve trazer felicidade pras pessoas… A gente quer buscar isso, que as pessoas sejam felizes. E a gente só é feliz quando se realiza integralmente. Não porque a gente tem dinheiro, mas porque tem um parque pra brincar, um rio pra ficar perto, nascentes que podem úteis e ter um poder econômico interessante…
A gente se realiza quando se percebe parte de um lugar. É isso que eu gostaria de trazer para o povo lorenense. Esse sentimento que, pra mim, é muito peculiar, profundo, importante. É essa a idéia de me sentir brasileiro em qualquer lugar em que estou. E em Lorena, em especial, eu me sinto ainda mais brasileiro, porque aqui é a minha aldeia. Aqui é o meu lugar. É aqui que eu criei raízes efetivamente. Eu sou mais indígena vivendo em Lorena do que certamente seria vivendo na Amazônia. Porque aqui eu consigo me perceber muito mais como pessoa, com a minha identidade, do que lá… porque lá eu estaria no meio dos meus. É isso que a gente deseja.
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A Prefeitura de Lorena informou que suas Secretarias de Assistência e Desenvolvimento Social e de Saúde têm realizado abordagens semanais a pessoas em situação de rua, por meio do projeto […]
Na manhã desta terça-feira, 5 de novembro, a Prefeitura de Lorena, por meio da Secretaria de Governança Digital, fez o lançamento oficial do aplicativo Sipp Cidade no município, destinado à […]
Nesta segunda-feira (4), a Secretaria de Educação iniciou a 5ª Feira de Ciências da Rede Municipal de Ensino. A primeira escola a realizar o evento foi a EM Prof. Climério […]
Recebemos essas fotos do nosso amigo Flávio, um lorenense apaixonado por fotografias, e não poderíamos deixar de compartilhar. Esses registros foram feitos em novembro de 2023, no Clube Comercial de […]
Hoje, o convite é para você contribuir para levar os alunos do cursinho gratuito Marie Curie ao Museu Catavento, em São Paulo. Uma experiência que vai contribuir muito na vida […]