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Minha Experiência no Teatro Cego

24/12/2014

O Teatro Cego é uma peça apresentada totalmente no escuro.  A proposta é da companhia Caleidoscópio Comunicação & Cultura, que desde 2012 trouxe o formato para o Brasil, inspirado num grupo argentino.
O que você enxerga quando não vê? Com essa experiência, elenco e plateia dividem o mesmo espaço. O desenvolvimento da trama acontece em um local totalmente escuro; assim, os expectadores precisam contar com os outros sentidos para compreenderem o conteúdo da peça. Essa condição ímpar insere o público no universo das pessoas com deficiência visual, que se utilizam do tato, olfato, paladar e audição para interagir com a informação ao seu redor.
É interessante a forma como o espetáculo é desenvolvido. Quando a visão deixa de ser o canal predominante para o acesso ao mundo, os demais sentidos ficam mais latentes e atentos aos estímulos diversos. Sons, vozes e cheiros chegam aos expectadores vindos de lugares diferentes, dando a sensação de que estão realmente inseridos na história.
No último final de semana, tive a oportunidade de assistir à peça ‘Acorda, Amor!’, pela primeira vez, no encerramento do V Fórum Inclusivo de Caraguatatuba. Se realmente o objetivo da peça era provocar os outros sentidos e aproximar o público que enxerga da realidade da pessoa cega, o teatro cumpriu muito bem sua função.
Ali no escuro me senti igual na multidão, porque a cegueira deixou de ser exclusividade minha e eu não precisava mais me preocupar se o ambiente ao meu redor era acessível. Afinal teria que ser, já que todos estariam na mesma condição de ausência de luz. Não precisei de qualquer tecnologia assistiva para equiparar-me em condições de participação, como audiodescrição, por exemplo. Saí do teatro com a sensação de que tinha experimentado o meu mundo e nada mais. Não me surpreendi, porque afinal enxergar através dos quatro sentidos é um exercício que experimento e que pratico em todas as ocasiões.
Foi muito natural ter que imaginar uma fisionomia somente pela respiração, pela entonação ou pelos elementos vocais durante um diálogo. Também costumo estar atenta a qualquer outro recurso sonoro que esteja dentro de um contexto, como o som de passos, por exemplo, ao caminhar dali pra cá, de um lado para o outro no palco. Ou ainda o bater de portas, balançar das chaves, arrasto de cadeira, batida de talheres, mochila sendo fechada, balde com água, entre outros. A posição dos personagens e localização espacial, se estão em pé, sentados ou no chão são facilmente percebidas se levarmos em conta o deslocamento de ar ou do som que produzem. 
Nessa peça, em especial, as pessoas precisam buscar na mente o significado para os sons que ouvem por meio de imagens já construídas e formadas num repertório particular. Tudo aquilo que já enxergaram vem à tona para suprir a ausência de luz. Com isso, conseguem imaginar tudo o que complementa o diálogo, ou seja, cenário, movimentação, objetos. Até aromas são sentidos e chama a atenção de quem está presente. É possível sentir o cheiro do sabonete dentro do contexto de banho, o cheiro do café, do bife acebolado, da pizza, do cachorro quente dentro da cena do café da manhã e do jantar. O som de tiro parece muito real e tem um efeito assustador. Riso, medo, ansiedade, susto, bem-estar, fome, são apenas algumas sensações experimentadas pela plateia que, num certo momento ganha um banho de gotas d’água que saem diretamente do balde em cena.
E enquanto todos iam assumindo seus papeis enxergantes ao saírem do teatro, eu continuei no meu mundo, tão colorido quanto a nossa imaginação é capaz de nos transportar. É sempre assim, num constante teatro cego, que faço dos meus outros sentidos um canal para perceber todos os elementos. Justamente por isso a experiência não me provocou surpresa; aliás, se provocasse, aí é que seria realmente fora do nosso mundo, numa fantasia sem sentido e sem significado.
Aprender a enxergar com os outros sentidos é uma habilidade que pode ser construída e aguçada por meio dessas experiências. São experiências muito positivas, que levam a ideia de que as imagens vão além do que o olhar pode alcançar. Foram momentos muito mais coloridos do que qualquer jogo de luz. Todas essas referências já fazem parte do meu mundo e achei fantástico poder compartilhar com outras pessoas como eu e outros cegos percebemos tudo isso e, principalmente, mostrar que todos são capazes de olhar os sons, sentir as palavras, saborear os perfumes, porque a luz não é o limite entre o ver e a escuridão.
Para conhecer mais sobre o Teatro Cego, acesse: javascript:nicTemp();

COLUNISTAS / Luciane Molina

Luciane Molina é pedagoga, braillista e pessoa com deficiência visual. Possui pós-graduação em Atendimento Educacional Especializado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e em Tecnologia, Formação de Professores e Sociedade pela Unifei (Universidade Federal de Itajubá).  Sua trajetória profissional inclui trabalhos com educação inclusiva, ensino do sistema Braille, da tecnologia assistiva, do soroban  e demais recursos para pessoas cegas ou com baixa visão, além de atuar desde 2006 com formação de professores.  Foi vencedora do IV Prêmio Sentidos, em 2011, e do IV Ações Inclusivas, em 2014, ambos pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo (SEDPCD-SP). Também é palestrante e co-autora do livro Educação Digital: a tecnologia a favor da inclusão. Atualmente, integra a equipe técnica da Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do Idoso de Caraguatatuba (SEPEDI), com ações voltadas para a comunicação inclusiva, políticas públicas para pessoas com deficiência visual e Núcleo de Apoio às Deficiências Sensoriais.


braillu@uol.com.br

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