O acaso é o instante que o inesperado acontece. Idealizar uma resposta sempre correta para cada desafio é acreditar num mundo previsível e em pessoas cujos padrões definem uma série de comportamentos a serem reproduzidos.
Por mais que eu tivesse idealizado o jornalismo como carreira profissional, o acaso me trouxe o magistério para que eu atuasse diretamente no ensino para pessoas com deficiência visual, área ainda pouco explorada aqui na região. Percebi a importância desse trabalho ainda dentro da faculdade. Tornei-me pedagoga ao mesmo tempo em que precisei usar a arte de comunicar para que a sociedade compreendesse o potencial de uma pessoa com deficiência e a presença desses alunos no ensino regular.
Jamais imaginei que quebrar paradigmas também fosse desconstruir aquele mundinho perfeito, pintado pelas mãos de uma sociedade que se acostumou a tentar corrigir os defeitos e as imperfeições de um quadro ou de uma escultura. O inesperado sempre me trouxe desafios que serviram muito mais pra fortalecer as crenças na educação inclusiva do que para convencer-me de que a melhor opção seria agregar pessoas com seus pares, categorizando-as por deficiências por meio do ensino especial.
Talvez eu tenha provocado uma série de conflitos internos em muitos profissionais; talvez, ainda, eu tenha trazido à tona as fragilidades de um sistema educacional acostumado com um modelo de ensino engessado. O que importa é que para que a educação inclusiva se efetive, de fato, é preciso trabalhar no presente e, acima de tudo, projetar a visão para o futuro. E é pelo futuro da pessoa com deficiência visual que eu tenho trabalhado incansavelmente.
Com isso, não afirmo minha posição contrária às escolas especiais quando elas agregam valor educativo e interdisciplinar na formação de uma pessoa. No entanto, defendo que o lugar dos alunos cegos ou com baixa visão seja dentro da escola regular no modelo defendido pela educação inclusiva. Inclusiva não apenas no sentido de pertencer, mas, sobretudo, no sentido de participar e de conviver com as diferenças.
A ideia é lidar com a deficiência visual naturalmente. Não há outra opção. Quanto mais se tenta criar especialistas na arte de não enxergar, mais contribuímos para aumentar o abismo entre o real e o possível. É inútil também carregar um manual de instruções de relacionamento numa incansável tentativa de defesa aos olhares curiosos daqueles que não querem ver sua imagem refletida no espelho dessas diferenças. E nesse quesito, as crianças dão mesmo um show à parte. É delas o entendimento mais puro de que as pessoas têm o direito de ser exatamente como são, sem mais nem menos, sem pôr nem tirar.
Essa simplicidade de pensamento das crianças me encanta, porque a sofisticação do pensamento culto consiste em atribuir valor distintivo entre as pessoas, impedindo o reconhecimento das diferenças. Deste modo, quando a aceitação e o reconhecimento do outro acontece de forma programada, está a exercitar-se muito mais a tolerância do que a própria inclusão.
Sou fruto de uma escola regular inclusiva, numa época em que pouco se falava sobre o assunto. Fui aluna, fui colega, fui amiga sem qualquer rótulo de “especial”. Aprendemos juntos a conviver e a reconhecer, na prática, as variedades infinitas de participação, de possibilidades, de interações. Com isso, seria impossível padronizar um modo de agir aplicável a toda e qualquer pessoa; seria incoerência reivindicar tratamento igualitário mediante um manual de instruções, como se fosse permitido conviver, mas sob determinadas condições.
Tenho a sensação de que antes era mais simples praticar a inclusão; que hoje a hipervalorização das diferenças em detrimento do comum tem provocado uma série de melindres e construído estereótipos. São tatuagens desenhadas para marcar um futuro de quase nenhuma oportunidade. Professores amedrontados cada vez que um aluno cego ou com baixa visão cruzam a porta de suas salas e desequilibram suas práticas confortáveis. É como se a forma não encaixasse no molde e pra isso é preciso esculpir uma nova maneira de encarar a situação.
Digo com convicção que não há o melhor caminho, nem a melhor maneira, nem a melhor prática… O que realmente existe é a certeza de que estamos em movimento e, por isso, somos os principais atores de uma educação inclusiva que está se construindo aos poucos, através do protagonismo da pessoa com deficiência e também através da força desses professores que não delegam para outros a sua tarefa de transformar realidades em possibilidades.
Não existe um mundo só para a pessoa com deficiência, ou um só para quem não tem deficiência. Existe somente um mundo, do qual todos nós fazemos parte. Portanto, todos devem ter as mesmas oportunidades. A inclusão só se faz necessária para algo que está fora. Se há um único mundo para todos, não precisamos incluir ninguém no mundo de ninguém. Basta tão somente se respeitar as diferenças. De cor, sexo, naturalidade, cultura e as limitações naturais de cada pessoa. Viver nesse mundo não é utopia, é algo que devemos exercitar no agora e continuamente.