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Como é “não enxergar”?

01/12/2014

Busco a leveza da vida. Aquela na qual encontro
o sentido para as coisas que não vejo, 
mas que vou esculpindo em minha memória
Como é não enxergar? É com essa indagação que a maioria das pessoas inicia um diálogo comigo e com tantos outros cegos por aí, numa tentativa de compreender um universo tão diferente do que vivem e, ao mesmo tempo, tão próximos delas. Não escondo que cada vez que me dirigem essa pergunta, sinto uma pontinha de orgulho em poder esclarecer certos mitos criados sobre a pessoa cega e que, talvez por descuido ou por falta de informação, são perpetuados indiscriminadamente por aí.
Embora a cegueira passe a ser um fator em comum no exemplo que se segue, é preciso compreender que essa condição é variável de pessoa para pessoa e depende de fatores internos, como o que levou à perda ou redução visual, aceitação, resistências e motivações, por exemplo, e também dos fatores externos, que são os recursos e ferramentas disponíveis para reduzir o impacto da incapacidade diante de uma tarefa a ser executada. Enfim, não há uma resposta pronta, nem mesmo uma realidade que possa servir de molde aos 6,5 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência visual no Brasil, segundo o Censo do IBGE de 2010, mas há questões bem pontuais que podem trazer uma maior percepção sobre esse universo ainda obscuro e pouco explorado.
Afinal, o que é não enxergar? 
Para quem nasceu cego ou perdeu a visão ainda nos cinco primeiros anos de vida, “não enxergar” passa a ser uma condição natural, a única experimentada até então. As referências assumem outros canais para a construção do repertório da linguagem e das imagens. Um objeto terá seu valor imaginário conforme for sentido pelas mãos; a geografia de um lugar será conhecida e moldada através dos sons, do deslocamento do ar, dos aromas daquele ambiente; uma expressão facial pode ser identificada pelo timbre da voz, assim como a noção de estética será construída à medida que os sentidos entram em ação e se fundem numa harmonia perfeita e agradável. Alguém pode apreciar o aroma do café e considerar seu gosto desagradável, por exemplo. Nesse caso, não houve uma harmonia entre os sentidos. Enquanto a textura de uma folhagem verde poderá ser tão agradável ao tato a ponto de fazer com que a pessoa aprecie essa tonalidade para escolha de roupas e objetos pessoais.
Para quem já enxergou pelo menos um pouquinho (baixa visão) ou tenha perdido a capacidade de enxergar mais tarde, as noções de profundidade, brilho, cores, objetos, expressões e quaisquer elementos já vistos ainda conservam valores estéticos e imaginários, reproduzidos pela memória. Esse repertório já conhecido passa a interagir com a cegueira através de características buscadas pelos outros sentidos. Ao passar a mão e explorar uma xícara, por exemplo, o tato reconstrói e busca a imagem de uma xícara antes armazenada pela visão. Se a pessoa ouve que a 10 passos existe um poste de iluminação, ela consegue fazer a referência entre a distância e o elemento concreto que estará diante dela. O mesmo acontece ao combinar cores ou interagir com imagens que são descritas por alguém ou ao ouvir o som característico de um avião sobrevoando uma cidade.
O grande mito é que a cegueira representa a ausência total de luz e que para experimentar essa sensação, bastaria fechar os olhos por alguns minutos e sair “tateando” por aí. Assim, quando um vidente – pessoa que enxerga – fecha os olhos, ela não consegue ter, de imediato, a sensação da cegueira, porque a predominância da visão sobre os demais sentidos ainda é latente em suas experiências. Apesar disso, realizar atividades com os olhos fechados pode até ser um exercício de reconhecimento e de autocontrole, além de ampliar o alcance dos outros sentidos. Com os olhos fechados, por exemplo, o barulho da chuva se torna mais intenso, o aroma das rosas mais forte e até o vento no rosto ganha uma direção. No entanto, não se lê Braille de olhos fechados, porque é preciso aprender a enxergar com as mãos e isso requer tempo e treino. Tempo para que a cegueira se configure como fator que limite o enxergar e treino para que o tato consiga atribuir valor simbólico, reconhecendo no relevo a informação para interpretá-la.
Se uma bala está ali, em cima da mesa, não basta vê-la. Sua aparência não revela o quão saborosa possa ser. Da mesma forma não podemos ver o vento, mas conseguimos sentir seu frescor ao acariciar nosso rosto. E se não é possível ver as cores, podemos associá-las a alguma sensação tátil, como por exemplo o verde das folhas, o branco do algodão, ou olfativas como o vermelho do aroma do morango. E o que dizer do molhado da água? E das melodias das músicas?  
Com isso, eu só posso concluir que existe uma relação íntima entre o ver e o não ver e sempre que me perguntam “o que é não enxergar”, respondo com convicção que é o mesmo que enxergar, mas através dos outros sentidos. Consigo sentir o aroma das cores, ouvir uma fotografia, saborear sonhos, até mesmo tatear palavras e, principalmente, reconhecer o quão brilhante parece ser uma estrela no céu, mesmo que já tenha se apagado dentro de sua galáxia.

COLUNISTAS / Luciane Molina

Luciane Molina é pedagoga, braillista e pessoa com deficiência visual. Possui pós-graduação em Atendimento Educacional Especializado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e em Tecnologia, Formação de Professores e Sociedade pela Unifei (Universidade Federal de Itajubá).  Sua trajetória profissional inclui trabalhos com educação inclusiva, ensino do sistema Braille, da tecnologia assistiva, do soroban  e demais recursos para pessoas cegas ou com baixa visão, além de atuar desde 2006 com formação de professores.  Foi vencedora do IV Prêmio Sentidos, em 2011, e do IV Ações Inclusivas, em 2014, ambos pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo (SEDPCD-SP). Também é palestrante e co-autora do livro Educação Digital: a tecnologia a favor da inclusão. Atualmente, integra a equipe técnica da Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do Idoso de Caraguatatuba (SEPEDI), com ações voltadas para a comunicação inclusiva, políticas públicas para pessoas com deficiência visual e Núcleo de Apoio às Deficiências Sensoriais.


braillu@uol.com.br

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