‘Cailel’
Por Gabriela de Aquino Costa
‘Cale-se!’ – urrou o Anjo para a figura que o encarava. – ‘Não diga meu nome nem em pensamento, ser abominável’.
‘Não me chame assim. Depois de tudo o que aconteceu, não diga que não sente nada’.
Ela sentia, mas preferia não sentir. A dor de reprimir esse sentimento era muito maior do que qualquer outra dor que um dia já sentira. Era quase como se arrancassem sua alma do corpo. Aquela alma que já foi tão pura; incorruptível, fria. Por que Deus permitira isso? Por que não avisara o que a esperava nesse mundo tão obscuro? Por que ninguém a alertou que não conseguiria voltar mais para o único lar que conhecia e amava? E acima de tudo, por que não a alertaram sobre os sentimentos humanos?
Ela se deixou cair na mais óbvia armadilha e se afundava cada vez mais. Suas asas antes brancas agora refletiam o tom dourado do conhecimento e já enegreciam nas pontas com os reflexos do pecado.
Ela observou o tom azulado do fogo celestial que percorria seu corpo, já fraco e quase completamente apagado de suas asas. Sentiu uma tristeza profunda. Era a última vez que poderia invocar seus poderes celestiais. Os encantamentos em seu corpo já se apagaram quase completamente e sua força diminuía rapidamente. Fechou os olhos e respirou fundo. A criatura à sua frente ainda a encarava, mas ela não queria olhar em seus olhos. Não queria saber o que já sabia, nem confirmar o que suspeitava. Preferia morrer sem nunca saber.
Respirou fundo e sentiu o toque suave das mãos do demônio. Eram sempre sutis e envolventes quando queriam seduzir almas para seu lado. Mas o toque era tão bom que sentiu um arrepio percorrer toda sua espinha e deixá-la de pernas bambas. Tentou afastar essa sensação e concentrar-se.
– Se afaste, demônio.
– Não. Pare de achar que vai se redimir, que vão te perdoar lá em cima. Você não voltará! Aceite que agora seu lar é aqui, e eu posso ficar com você. Vamos ficar bem. vou te ajudar.
– Não quero sua ajuda! Não sei do que está falando. Você só quer me usar, se aproveitar da minha fraqueza.
– Pare com isso, Anjo. Sabe que não é verdade, por favor, não jogue fora o que vivemos dessa forma.
A voz dele era suave e baixa. Ele se aproximava vagaroso e seu rosto já quase se encostava ao dela.
– Olhe pra mim – falou em um sussurro – Por favor, você precisa ver que o que digo é sincero. Eu nunca senti isso antes, eu nunca soube o que era isso.
Ela respirava ofegante. Sentia as lágrimas caminhando para seus olhos, querendo fugir. Engoliu em seco.
– Eu não quero.
Ele segurou seu queixo delicadamente e pousou os lábios sobre os dela. Foi como se eletricidade passasse pelos dois corpos, unindo-os como um.
O Anjo deixou as lágrimas rolarem pelo rosto, e com as mãos livres puxou o cabo da espada que balançava pendurada em sua cintura. Invocou em pensamento seu poder celestial, e ao abrir as asas com a chama azul brilhando pela última vez, apunhalou com um só golpe o coração de Asbel. O Anjo Caído olhou-a perplexo e caiu.
– Cai..lel.. – disse pela última vez o nome do Anjo e ela pôde ver, agora encarando-o, que o que ele dizia era verdade.
Mesmo sem querer, ela soube e teve a comprovação do que a assustava. Ele a amava. E ela também.
Deixou-se cair ao lado dele, agora com o corpo completamente humano, e pronto para morrer também.
Sobre a autora:
Gabriela de Aquino Costa, descendente do povo Munduruku, é graduanda em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e membro fundador da Academia Jovem de Letras de Lorena. Nascida entre pais escritores e professores desenvolveu o gosto pela leitura e escrita desde muito nova. Recentemente, alguns de seus textos foram publicados, pela primeira vez, na Revista Leetra Indígena, da Universidade Federal de São Carlos.
Esse texto é de exclusiva responsabilidade do autor. A AJLL não se responsabiliza pelas possíveis opiniões aqui apresentadas. Respeitamos a criação literária de cada autor, difundindo linguagem literária de linguagem gramatical, em textos que julga ser necessário