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Como é a sua maçã?

19/03/2015

É provável que a maioria das pessoas tenha certa dificuldade de entender o que um cego vê, principalmente porque a ideia é de que a cegueira reproduza uma escuridão, um vazio, a total ausência de luz. Cegueira é, para o senso comum, o antônimo de enxergar.
 
Por isso ainda existem melindres sobre o uso da palavra ‘ver’ em um diálogo com uma pessoa com deficiência visual. Se consultarmos um dicionário temos, dentre outras definições, que enxergar também significa descortinar, observar, perceber, notar, adivinhar e por aí vai. Conclui-se, então, que um cego também vê, enxerga o mundo de uma maneira bem peculiar, já que o acesso às informações chega por outros canais.
 
Se num instante você fechar os olhos e tentar imaginar uma maçã, certamente a variedade de maçãs será farta, tanto quanto os leitores que buscaram em sua memória uma fruta que já conhecem tão bem. Algumas vermelhas de tão maduras, outras graúdas e suculentas, talvez possam ser verdes e azedas, consistentes ou já bem murchas e ainda cheirosas ou não. Mas e se você nunca tivesse visto ou saboreado uma maçã, qual seria o seu repertório de imagens e sensações?
 
É isso que acontece com uma pessoa cega: quanto maior seu repertório de conhecimento dos objetos, figuras, sabores, sons, cheiros, melhor vai ser sua interação com a realidade, uma realidade que não está desvinculada da cegueira, mas que precisa ser compreendida a partir dela. Essa variedade de ‘imagens’ depende de uma observação criteriosa dos elementos que compreendem as características daquele determinado objeto, para perceber o que ele representa dentro de um contexto imagético. Ou seja, a pessoa cega só vai conseguir buscar a ‘imagem’ mental da maçã se ela conheceu a maçã através dos demais elementos, como aroma, sabor, textura, consistência e, pra quem um dia a tenha enxergado, pela lembrança.
 
Diante do exposto, pessoas com deficiência visual devem ser incentivadas a criar seu repertório de imagens, seja pelo contato direto com os elementos concretos, seja pela descrição, associando as características a outros elementos sensoriais.  A cor branca pode ser associada a maciez do algodão, verde com cheiro de mato, amarelo com o calor do sol. Mas de nada adianta dizer que o azul é a cor do céu se a pessoa nunca enxergou o que é o céu; Ora, o céu também pode estar nublado!
 
Não tenha dúvida de que ‘os olhos são mesmo as janelas da alma’, por isso permita descortinar essas janelas, emprestando as imagens para quem não as vê, mas pode senti-las, percebê-las, observá-las, notá-las e, porque não imaginá-las?

COLUNISTAS / Luciane Molina

Luciane Molina é pedagoga, braillista e pessoa com deficiência visual. Possui pós-graduação em Atendimento Educacional Especializado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e em Tecnologia, Formação de Professores e Sociedade pela Unifei (Universidade Federal de Itajubá).  Sua trajetória profissional inclui trabalhos com educação inclusiva, ensino do sistema Braille, da tecnologia assistiva, do soroban  e demais recursos para pessoas cegas ou com baixa visão, além de atuar desde 2006 com formação de professores.  Foi vencedora do IV Prêmio Sentidos, em 2011, e do IV Ações Inclusivas, em 2014, ambos pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo (SEDPCD-SP). Também é palestrante e co-autora do livro Educação Digital: a tecnologia a favor da inclusão. Atualmente, integra a equipe técnica da Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do Idoso de Caraguatatuba (SEPEDI), com ações voltadas para a comunicação inclusiva, políticas públicas para pessoas com deficiência visual e Núcleo de Apoio às Deficiências Sensoriais.


braillu@uol.com.br

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