Seria apenas mais um dia “normal” naquele hospital, não fosse por aquela mãe…
O alarme do celular toca. 6h da manhã de um dia frio e cinzento. Manhãs de São Paulo. Dá vontade de jogar o celular na parede e dormir mais um pouco, mas não dá. Ainda temos que tomar café e pegar o metrô, pra estarmos no hospital antes das 8h, horário marcado pra consulta.
Ao invés de reclamar, preciso lembrar que, graças a Deus, podemos pagar um hotel. Viemos pra capital na véspera da consulta, pra não corrermos o risco de perder o horário e a viagem, o que já ocorreu conosco duas vezes naquele setor, pois alguns atendentes são desumanos. E daí se você acordou às 3h, 4h da manhã, pegou ônibus, enfrentou fila, dor de cabeça, frio? Problema seu! O que importa é que esteja no hospital no horário marcado pra consulta. Você pode esperar uma, duas, três, quatro horas pra ser atendido… eles não podem tolerar nada!
Também preciso agradecer a Deus porque posso custear a viagem – de carro ou de ônibus – ao invés de ter que ficar na rua de madrugada, esperando a van ou a ambulância da cidade, que geralmente são precárias e vão sempre lotadas. Quando tem!
Por último, lembro-me, antes de levantar, que tenho um motivo ainda mais importante pra agradecer: apesar dos transtornos e de toda a demora pra sermos atendidos: estamos nas mãos dos melhores médicos do país, no hospital-escola de uma das universidades mais respeitadas do Brasil e do mundo! E o primordial: temos saúde, apesar de precisarmos sempre de alguns ajustes!
Com esse pensamento, levanto e acordo meu filho. Ele está feliz, apesar do motivo da viagem ser de saúde, pois finalmente temos um tempo para nos curtirmos. A internet do hotel está horrível desde ontem, o que me impediu de trabalhar, mesmo que à distância. A atenção então era só pra ele, coisa rara hoje em dia, quando se tem dois trabalhos, marido, casa, família e todas as responsabilidades da mulher que participa ativamente da manutenção do lar, em todos os sentidos. Também estou feliz de estar com ele, curtindo meu já não mais “pequenino”… Tudo de bom esse menino! Carinhoso e atencioso como poucos jovens de sua idade. Com 15 anos, não me lembro de uma vez que ele tenha me desrespeitado, embora sua educação não tenha sido tão rígida. Penso que seja da personalidade dele, respeitar as pessoas dessa forma. Que orgulho do meu amor!!!
Entendo perfeitamente quando ele diz que adora essas viagens, pois sinto exatamente o mesmo. Era assim com minha mãe também, quando podia acompanhá-la em seus tratamentos de saúde a Barretos. Não encarávamos como viagens obrigatórias as idas para quimioterapias, exames, consultas, etc…. Para nós, eram passeios. Era no que transformávamos as idas e vindas; e também podíamos nos curtir nos momentos de espera. Que saudade dela… se estivesse aqui conosco hoje, certamente que também estaria se divertindo.
Tomamos nosso café – mais momentos especiais de mãe e filho. Por que o ritmo de vida tornou-se tão cruel a ponto de me fazer pensar que preciso de mais momentos simples do dia a dia com ele?
Logo vamos para o hospital. Lá, como sempre, muita gente. Alguns atendentes se lembram que estão lidando com seres humanos; porém, outros, infelizmente… Logo na entrada do enorme prédio, descubro que há nova regra, que não me foi avisada previamente. “Senhora, quantos anos seu filho tem?”. Eu respondo que 15 e a moça, sem sequer olhar na minha cara, diz: “Então pode ir lá naquela fila lá fora e fazer carteirinha de acompanhante. Só até 12 anos que não precisa fazer”. Eu argumento que não podemos atrasar, sob pena de perder a consulta que aguardamos há meses, mas ela não se interessa por nós. “Não posso fazer nada”, limita-se a responder.
Dirijo-me então à fila quilométrica. Pelo menos 70 pessoas estão na minha frente. O sentimento de raiva, humilhação, frustração, invade e aperta o peito. Mas não tenho outra opção. Para aquela moça que sequer reparou em meu rosto, quem somos nós? O que importa para ela todos os sacrifícios que fizemos para estarmos ali naquele momento?
A solução é mandar meu filho subir na frente, mesmo receosa (estamos em São Paulo, num dos maiores hospitais do país!), entregar a sua ficha na recepção do setor onde será atendido e pedir pra ele me esperar. Enquanto isso, fico na fila lá fora, angustiada, rezando pra ele não ser chamado para atendimento antes que eu consiga chegar.
Um tempo depois, faço meu cadastro e subo para encontrá-lo. A sala de recepção, bastante ampla, está lotada. Gente de todas as idades. Fileiras de cadeiras dispostas dos dois lados, com um espaço de livre circulação no meio da sala, de forma que quem está sentado do lado direito da sala fica de frente para quem está sentado do lado esquerdo. Meu filho está lá na última fileira da direita, mas todas as cadeiras estão lotadas. Fico em pé, em um cantinho da sala, por uns 15 minutos. Quando vaga uma cadeira do lado esquerdo, sento-me, de forma que meu filho fica bem de frente pra mim.
Ele está quietinho, com a cabeça encostada na parede, seu pensamento voando. Certamente está cansado da viagem e daquela correria doida de São Paulo. Isso sem falar no sono àquela hora da manhã, ainda mais com o frio que faz… De repente, surpreendo-me observando aquele rostinho lindo, que amo tanto que nunca palavras poderão explicar… Um misto de emoções invade meu coração: amor, ternura, orgulho… Deus foi generoso comigo, enviou-me de presente um ser humano dotado de humanidade (característica cada vez mais rara, hoje em dia) para que eu pudesse chamar de filho. Começo a me lembrar de todas as lutas por sua saúde, que era bem frágil quando nasceu… de sua cirurgia cardíaca ainda bebê, de todos os sustos, internações, médicos, consultas, exames… Meu “pequenino” ali é realmente um guerreiro! Lutou, venceu e superou seus próprios limites! Hoje é um garoto saudável, graças a Deus, apesar de sermos bastante cuidadosos com sua saúde. Um lindo menino! Meu coração transborda de amor… e ele nem percebe que está sendo tão admirado! (rsrs)
Quase uma hora depois, vaga uma cadeira ao seu lado. Ele me chama. Sento-me ao lado dele e encostamos a cabeça um no ombro do outro. O volume de pessoas na sala de espera não diminui e parece que teremos um longo tempo pela frente… De repente, um rapaz – enfermeiro ou médico residente, talvez – começa a falar com todo mundo: “Pessoal, prestem atenção à senha no quadro pra não perderem a vez de vocês. Ela não é por ordem numérica, fiquem atentos! Vocês estão aqui hoje para serem atendidos. Provavelmente, todos serão. Pode demorar uma, duas, três horas ou até um pouquinho mais, mas todos devem ser atendidos. Peço que vocês tenham um pouquinho de paciência”. Penso naquelas palavras… e que outra opção nós temos, a não ser esperar? E no quão injusto é estar ali e sequer ter a certeza de que será atendido!
O tempo vai passando… Uma, duas, quase três horas… Estou com os olhos pesados, quase cochilando, quando uma mulher entra com a filha, na cadeira de rodas, na sala. A garota deve ter a idade do meu filho, mas é especial. Está toda amarrada à cadeira, com almofadas e travesseiros (penso que para protegê-la de se machucar), com proteção ortopédica nas duas pernas bem finas, desde os joelhos até os pés. Ela visivelmente tem dificuldade de controlar a cabeça, que mexe de um lado para o outro, sem parar. E está irritada, visivelmente irritada. Não fala, mas chora sentida. Não sei o que ela tem. Penso que pode ter sido uma paralisia cerebral, talvez. Ou alguma outra doença grave.
Praticamente todos os olhares da sala se voltam para aquela menina e aquela mãe, uma senhora que já deve ter mais de 50 anos. Olhares de curiosidade, mas sobretudo de compaixão. Fico pensando se há algum olhar de irritação, pois o protesto da menina é bastante audível. E aquela mãe na maior calma, na fila pra entregar a folha de agendamento, esperando pra ser atendida como todos ali. Atrás da cadeira de rodas de sua filha, ela repete várias vezes, com voz baixa e suave: “Calma, filha… Calma, filha…”.
Depois de receber sua senha, a mulher se senta, levando a menina consigo. Como sua irritação não passa, ela sai da sala com a filha, volta, sai, volta… Senta-se novamente, com uma serenidade admirável. Diria que a palavra certa seria inacreditável, diante daquela situação.
A garota continua irritada. Chora. A mãe conversa com ela, mas não resolve. Comento com meu filho que ela deve estar irritada por ser um local estranho, com tanta gente, provavelmente por estar toda amarrada, sentada naquela cadeira… e que talvez ela se sinta mais confortável em sua casa, em sua cama…
As pessoas continuam a reparar disfarçadamente, como eu, não posso negar. A fragilidade daquela vida prende minha atenção. De repente, depois de pelo menos meia hora tentando acalmá-la conversando calmamente, a mãe vira a cadeira de rodas de sua filha de modo que ela fique de frente para ela. E então ela segura uma de suas mãos e com a outra, começa a acariciar seu braço.
É como mágica aquele toque, aquele amor, aquele carinho, aquela paciência. A menina para de chorar instantaneamente. Até a cabeça para de ficar mexendo de um lado para o outro. Apenas pende-a para o lado direito, recostando-a em seu próprio ombro. E assim ela permanece, claramente segura e satisfeita por aquele gesto.
Como não pensar no poder de uma mãe diante de uma situação como essa? Quando aquela mãe tenta mudar de posição, a menina volta a reclamar, e então ela desiste. Não posso deixar de pensar no sofrimento diário na vida dessa mãe. Na exaustão física, nas milhares de renúncias que ela provavelmente fez para dedicar-se com tanto amor a essa filha. E no quanto deve ser duro lutar, lutar, lutar por um filho apenas para mantê-lo vivo… mas sem as expectativas dos pais “normais”. Sem esperar que seu bebezinho cresça normalmente e comece a andar, falar, fazer gracinhas, sorrir pra você, se comunicar…
Lembrei de uma outra mãe que admiro muito, que cuida de um filho autista com todo o seu amor há mais de 30 anos. Me vem à memória ela me contando de quando o médico explicou-lhe sobre a doença do filho, quando ele era ainda um garotinho de menos de três anos: “Então, doutor, o senhor quer dizer que eu tenho um filho especial?”. E ele lhe respondeu: “Não! A senhora é que será uma mãe especial!”. É o que ela faz, desde então, já há quase quatro décadas!
Esses pensamentos transformam o meu dia… Não importa se os meus problemas são menores ou maiores aos olhos dos outros… “Cada um sabe a dor e a delícia de ser quem se é”. O meu sofrimento diante da dor daqueles que amo não pode ser comparado, ampliado ou diminuído. Mas pensar na força e no amor dessas mulheres me faz ter a certeza de que também tenho que ser forte, mesmo diante de todas as adversidades que a vida me impõe. Mesmo estando vivendo um dos momentos mais confusos e difíceis da minha existência, por ter me despedido definitivamente da minha mãe, um ano e três meses atrás. A saudade é grande e as mudanças foram imensas, mas não posso me esquecer que eu também tenho essa missão: ser mãe! Sempre foi o maior sonho da minha vida! Fui abençoada com um filho maravilhoso e preciso agradecer a Deus todos os dias por isso… não apenas com palavras, mas com gestos, com atitudes, sendo MÃE, no sentido mais bonito da palavra, todos os dias…
O poder de uma mãe é realmente incrível. Uma pena que tantas o utilizem para o mal, mas não quero pensar sobre isso agora. Quero pensar nesse poder de amar incondicionalmente, nessa vontade de ser cada vez melhor apenas para fazer sorrir, para fazer feliz… Faço um pacto comigo mesma: enquanto eu viver, essa será a minha maior motivação. Sigo firme nesse propósito.
Graziela Staut – jornalista que sonha um dia ser escritora