O cenário do litoral passou a fazer parte do meu cotidiano há pouco mais de dois anos. Entre um trabalho e outro, porque minha chegada em Caraguatatuba é basicamente para exercer atividades profissionais, foi inevitável experimentar sensações tão diferentes daquelas vividas todos os dias nas cidades daqui do Vale do Paraíba.
Das paisagens exuberantes que se eternizam numa fotografia, o que as pessoas se esquecem é de colocar os outros sentidos, além da visão, para vislumbrar tudo o que a natureza tem para oferecer.
Com a falta da visão, aprendi a colocar os meus outros sentidos em alerta, trabalhando em sintonia para que eu não perca nenhum detalhe, para que todas as outras percepções e sensações sejam muito mais latentes, a ponto de construir a minha fotografia, de imaginar cenários que se distinguem pelo som, pelo cheiro, pela textura e, por que não, também pelos sabores. Afinal, a culinária também é a identidade de um lugar.
Experimentar a liberdade de caminhar solta, guiada pelo calor do sol, pelo vento que bate no rosto e pela água que passa suave nos pés ao estourar de cada onda é desprender-se de toda e qualquer preocupação com as formalidades, com o parecer politicamente correto. É despreocupar-se com a presença de mobiliário urbano, com o impacto sentido ao cambalear sobre um daqueles buracos abertos numa calçada dura de cimento, num aglomerado de pessoas que dividem o mesmo espaço para disputar a sombra mais fresca ou o caminho mais curto sem que perceba a presença de outro ser humano ali ao lado, correndo ao ritmo frenético.
Sinto que a natureza nos reconhece, e reconhece em nós toda a diversidade. Por isso traz pra gente, com a mesma intensidade, tudo o que nos pode oferecer sem pedir nada em troca a não ser nosso respeito e gratidão.
Já perceberam que nenhuma concha é exatamente igual à outra? Cada uma das conchas que encontramos ao caminharmos pela areia tem um desenho, uma cor, um formato, um tamanho , e é isso que as fazem tão belas e singulares diante da nossa investigação. Cada praia também tem sua textura de areia, umas mais finas e outras mais grossas. Algumas ainda, de tão fofas e macias, nos fazem afundar numa constante dança do desequilibrar-se e retomar o passo em meio às gargalhadas.
O mar nos envolve na sua mais perfeita melodia, ora numa música alta, cujo ritmo constante nos chama a observar com mais cautela esse movimento, ora numa melodia suave e lenta, que nos abraça e nos envolve em suas águas, frias ou mais quentes, cristalinas ou menos transparentes. O que importa é que cada som e cada cheiro revela a identidade daquele lugar tão mágico e fascinante, ao mesmo tempo em que compreendemos que todo esse cenário é mutável.
As gotículas d’água que acariciam meu rosto, a espuma branca que massageia meus pés, o perfume que não encontramos em frascos, nem na mais requintada loja, o som que instrumento algum é capaz de reproduzir com tanta precisão, a sensação de liberdade dos passos na areia são parte de um quadro esculpido pelas percepções que dão vida a esse cenário tão bem arquitetado pelas mãos de Deus. A imagem fotografada pelos olhos ou pela lente de uma câmera jamais dará conta de transmitir o que a natureza nos reserva. Talvez não tenhamos aprendido a observar seus detalhes mais perfeitos e mais relevantes. Ou talvez ainda a relevância esteja nas múltiplas maneiras de observação de uma paisagem em movimento, que se funde com a nossa imaginação.
Luciane Molina é pedagoga, braillista e pessoa com deficiência visual. Possui pós-graduação em Atendimento Educacional Especializado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e em Tecnologia, Formação de Professores e Sociedade pela Unifei (Universidade Federal de Itajubá). Sua trajetória profissional inclui trabalhos com educação inclusiva, ensino do sistema Braille, da tecnologia assistiva, do soroban e demais recursos para pessoas cegas ou com baixa visão, além de atuar desde 2006 com formação de professores. Foi vencedora do IV Prêmio Sentidos, em 2011, e do IV Ações Inclusivas, em 2014, ambos pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo (SEDPCD-SP). Também é palestrante e co-autora do livro Educação Digital: a tecnologia a favor da inclusão. Atualmente, integra a equipe técnica da Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do Idoso de Caraguatatuba (SEPEDI), com ações voltadas para a comunicação inclusiva, políticas públicas para pessoas com deficiência visual e Núcleo de Apoio às Deficiências Sensoriais.
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