Meus leitores já devem ter percebido que mesmo tendo deficiência visual, sou bastante ligada a imagens. Seja de uma forma, seja de outra, elas fazem parte da vida de qualquer pessoa: nas cores das roupas, por exemplo, ou numa fotografia que se queira mostrar para os amigos. Até mesmo nas redes sociais, as publicações que contém imagens apresentam um índice de visualização infinitamente superior às que são apenas texto. É claro que tais postagens seriam muito mais atrativas se contemplassem imagem e descrição, mas isso fica pra um outro post.
Nessas últimas semanas, por causa dos contatos que tenho tido com muitos profissionais da educação, um assunto tem sido alvo de recorrente questionamento. Posso ensinar cor para uma pessoa cega? Pois bem, sobre isso venho esclarecer alguns pontos, tendo em vista a minha própria experiência enquanto pessoa com deficiência visual e pedagoga.
O primeiro ponto que merece destaque é que as cores têm um simbolismo próprio, isto é, para cada pessoa, ela poderá representar um sentimento, uma emoção, um objeto, um momento vivido, etc. Quem nunca ouviu falar que determinado tom de verde lembra um verde folha? E que o azul é celeste? E que um vermelho é vermelho sangue e outro, vermelho tomate? Conhecemos até mesmo as cores que fazem menção a bebidas e frutas, como é o caso da cor vinho e a cor de abóbora, e que fazem parte do repertório de qualquer pessoa.
Para quem não enxerga, as cores vão ganhar significados reais através de associações táteis, olfativas e até gustativas. Chamamos isso de sinestesia. A diferença entre sentir e enxergar as cores está no fato das abstrações deixarem de ser visuais e passarem a usar o próprio repertório já construído pela pessoa cega, por meio das texturas, dos aromas e dos gostos que já conhecem.
O aroma do morango, por exemplo, pode ser associado ao vermelho. A textura macia do algodão, ao branco. O sabor e a consistência de uma folha de alface, ao verde. E assim por diante… Porém, se a pessoa não gostar do morango e esse aroma não fizer parte do diaadia dela, essa associação não atingirá seu objetivo, que é criar uma representação imagética que facilite a identificação e a interpretação das cores, isoladas ou combinadas com outras. Esse reconhecimento é individual e depende das experiências vividas por cada pessoa. Assim, um vermelho concebido visualmente por quem enxerga, jamais será o mesmo vermelho de quem associá-lo através do aroma ou do gosto de um morango.
A associação precisa acontecer a partir de objetos, aromas e gostos que são familiares e que provoquem alguma sensação ou lembrança. Muitos sabem que os cheiros são capazes de nos transportar para situações e momentos diversos vivenciados por nós e, por isso, essa talvez seja a melhor de todas as experiências comparativas. As associações também precisam ser agradáveis ao tato, ao olfato e ao paladar para que não haja a rejeição imediata e a cor se torne esteticamente “feia” na concepção de quem a vê pelos sentidos remanescentes. Associações dessa natureza interferem negativamente na construção autônoma e independente dos conceitos de imagens pela pessoa cega. Cuidado especial deve ser tomado para associar cores quentes e frias, pois essas experiências nem sempre são agradáveis ao tato e não conservam significação imagética quando usadas para cores isoladamente, já que o quente/frio poderá representar infinitos significados e as associações precisam ser o mais específicas possíveis.
Para explicar, de maneira simplificada, como funciona uma associação imagética, pense no seguinte: as estrelas que aparecem no céu pela noite não se assemelham em nada com as estrelas que desenhamos para representá-las, com 5 ou 6 pontas triangulares. Esses desenhos, então, são simbólicos, mas onde quer que estejam estampados, identificamos que são uma estrela. É assim também com as demais associações que, mesmo abstratas fisicamente, ou seja, invisíveis ao olhar, representam algo que pode transportar uma imagem/simbolismo à memória. Ou seja, transformam texturas, aromas e sabores em algo palpável, criando imagens mentais de algo já conhecido e ativadas pelos sentidos das pessoas que não dispõem da visão como canal predominante de acesso às informações.
Por último, nunca deixe de explicar e nomear cores para uma pessoa com deficiência visual, elas gostam de participar do mundo “real” das imagens. Descreva as cores, associando-as com algo que esteja ao alcance ou que seja familiar da pessoa cega. Fale sobre imagens, tons, combinação das cores e roupas. Afinal, isso também é inclusão!
Luciane Molina é pedagoga, braillista e pessoa com deficiência visual. Possui pós-graduação em Atendimento Educacional Especializado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e em Tecnologia, Formação de Professores e Sociedade pela Unifei (Universidade Federal de Itajubá). Sua trajetória profissional inclui trabalhos com educação inclusiva, ensino do sistema Braille, da tecnologia assistiva, do soroban e demais recursos para pessoas cegas ou com baixa visão, além de atuar desde 2006 com formação de professores. Foi vencedora do IV Prêmio Sentidos, em 2011, e do IV Ações Inclusivas, em 2014, ambos pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo (SEDPCD-SP). Também é palestrante e co-autora do livro Educação Digital: a tecnologia a favor da inclusão. Atualmente, integra a equipe técnica da Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do Idoso de Caraguatatuba (SEPEDI), com ações voltadas para a comunicação inclusiva, políticas públicas para pessoas com deficiência visual e Núcleo de Apoio às Deficiências Sensoriais.
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