Nossa cidade tem, sem dúvida, uma história de amor com o teatro. Ainda que de forma sazonal, um amor que vai e vem – por vezes tórrido, proclamado e assumido, outras, nem tanto, ele sobrevive. Um amor, digamos, intenso, mas leviano. Culpa do teatro? Talvez. Meio incerto, com aparições inconstantes, há momentos em que ele some, como um caixeiro-viajante, um mascate, com o intuito de vender suas mercadorias mundo afora sai sem hora pra voltar. Mas volta. Felizmente ao que parece, nesse momento, ele está em casa e estão, teatro e cidade, em plena Lua de mel. Bons espetáculos vieram na bagagem, o público tem correspondido e uma série de patrocinadores e apoiadores está se predispondo a chancelar esse amor. A torcida é para que o teatro se sinta acolhido e fique, senão para sempre, por um longo tempo.
Um dos efeitos dessa estada transitória é a pouca intimidade que os habitantes da cidade têm com termos, vocábulos e expressões relacionadas ao teatro. Pouca gente sabe o que é uma bambolina, um urdimento e para que serve um cenotécnico. Nada grave – nada que uma convivência mais assídua e uma pequena curiosidade não sanem, mas não custa, também, dar uma ajudinha.
Existe no meio de tudo isso uma figura estranha, sinistra, encarada muitas vezes como indesejável e perigosa. Mas que no fundo é bem-vinda e necessária: a crítica. Não estamos acostumadas a ela, aqui na cidade. Não me lembro de ter um crítico de plantão, com formação e experiência suficientes para tecer uma análise criteriosa de um produto teatral. No máximo, um comentário bem amarrado, uma resenha carinhosa, uma ponderação. Em lugares, no entanto, em que o fazer teatral é mais forte e constante, a crítica tem lugar permanente, nem sempre respeitada, mas invariavelmente incômoda e produtiva. Nessa semana o teatro perdeu uma dessas figuras simbólicas, a rainha da crítica carioca, que durante mais de cinquenta anos (ela morreu com 91) transitou pelas salas de espetáculos do Rio de Janeiro levando expectativa, medos, respeito e desafetos – tudo ao mesmo tempo: falo de Bárbara Heliodora. Uma senhora elegante, áspera, de pena forte e impiedosa, grande cultura e, last but not least, uma das maiores autoridades no entendimento, tradução e análise da obra de William Shakespeare.
Sou da geração Bárbara Heliodora. Durante os anos que estive no Rio em plena produção era dela que vinham as críticas mais esperadas. Sem, de forma alguma, ser indelicado com os outros críticos que igualmente me deram boas dicas de como aprimorar meu trabalho, era dela, sem dúvida, o comentário mais aguardado. Fui feliz com ela, sempre recebi críticas consideradas “boas” recheadas, invariavelmente de algumas alfinetadas de baixo calibre, que ao invés de me desgostarem sempre me incentivavam. Tive críticas escritas por ela de todas as minhas peças, muitas vezes ela estava na estreia e apareceu até, vejam vocês, em alguns espetáculos infantis que escrevi e dirigi e que não cabia a ela estar presente – pelo menos como profissional da crítica oficial para trabalhos infantojuvenis. A grande maioria dos “toques” que recebi me valeu muito, portanto, hoje, uma parte da minha história no teatro ganha um novo momento: o teatro carioca sem Bárbara Heliodora. Coincidentemente estou, em Lorena, montando em minhas oficinas uma compilação de três textos de Shakespeare, que estreia no final do ano. Estou lendo seus livros junto com meus alunos e me inspirando em vários textos que ela escreveu sobre o Bardo. Uma bela história de amor ao teatro se encerra, mas como o teatro, há de deixar marcas, pra sempre!
Abaixo, trecho das críticas de Bárbara Heliodora sobre alguns de meus espetáculos: “Os Olhos Verdes do Ciúme” (2001), “Aurora” (2003) e “Geringonça” (2004).
Larissa Bracher e Angela Rebello em ‘Os Olhos Verdes…’
Guilherme Leme e Larissa Bracher – na mesma peça
“Os Olhos Verdes do Ciúme” é um texto divertido, imaginativo, elegante e se surpreendente habilidade dramatúrgica, pois vemos a trama construída em vários níveis. (…) A direção, do autor, é particularmente criativa por encontrar tons e linguagens diversos. O resultado é um espetáculo leve mas inteligente, fora da rotina e muito bem vindo”. ( Crítica – Bárbara Heliodora – O Globo)
Mônica Martelli e Guilherme Leme em “Aurora”
Rodolfo Botiino e Guilherme Leme em “Aurora”
“… em “Aurora”, o autor criou uma ligeira e agradável comédia de época, na qual se apropriou com muita habilidade da linguagem do tempo de Machado de Assis para contar sua história. (…) O autor conhece suas intenções, o clima que deseja criar, o nível crítico buscado. E a direção de Caio de Andrade segura toda a encenação dentro de parâmetros cuidadosamente estabelecidos”. (Crítica – Bárbara Heliodora – O Globo)
Beth Lamas, Marcello H e Paulo César Grande, em “Geringonça”
O elenco completo da peça “Geringonça”
“A direção é do próprio Caio, que, como sabe o que escreveu, não tem dificuldade em conduzir tudo no tom e no clima que desejava. (…) “Geringonça”, enfim, é uma gostosa evocação do passado brasileiro, bonita para os olhos e muito divertida”. (Crítica / Bárbara Heliodora – O Globo)