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COLUNISTAS / Mundurukando

Nunca gostei de ser “índio”

08/10/2015

Nasci com cara de índio, dizem. Mas, só soube disso depois. Colegas de escolas assim me definiram tão logo me viram chegando com um uniforme apertado fazendo conjunto com um short e um sapato com número menor que meu pé.
Foi uma experiência muito estranha para mim, que me deixou um pouco doido da cabeça, meio traumatizado. É que eu cresci em uma pequena comunidade no interior do Pará. Era uma aldeia, mas lá ninguém se apelidava de índio. Todos tínhamos nome, sobrenome, parentesco, amigos e animais de estimação. O que não tinha era energia elétrica e por isso a vida começava cedo, para aproveitar bem a luminosidade do sol.
Aprendi, com isso, a respeitar a natureza desde que era menino. Aprendi a olhar para o tempo e reconhecer suas mensagens: chuva, sol quente, tempestade, frio, lua cheia ou minguante. Aprendi a respeitar os passos dos outros seres e a não fazer xixi no igarapé. Aprendi caçar calangos usando armadilhas ou tacape e a flechar pequenos animais a uma distância segura. Também aprendi a tomar banho de chuva, nadar com desenvoltura, esculpir meus brinquedos nas taquaras e caroços de manga e andar na mata sempre atento aos sinais de perigo.
Apesar de tudo o que sabia, de escola e de amizade confusa nada sabia. Por isso, me zanguei quando minha mãe me obrigou a colocar a tal farda para ir à escola. 
– É para você aprender coisas novas – ela disse. 
– É para você crescer inteligente – meu pai disse. 
– É para você saber mais que nós – meu tio disse. 
– É para você ficar civilizado – meu irmão mais velho ironizou.
Quem não disse nada foi meu avô, que ficou olhando de longe um tanto desconfiado. Observou tudo o que estava acontecendo e depois riu da roupa que eu estava usando. Não foi um riso de deboche, mas eu senti como se fosse. Depois compreendi o que se passou na cabeça dele. Ele sabia o que eu iria passar.
De qualquer maneira, eu estava animado para aquele momento. Muito já ouvira sobre a escola do branco e me passava pela cabeça uma vontade grande de conhecê-la. E foi com esse espírito que aceitei usar aquela farda feia e aqueles sapatos que apertavam meus pés que, antes, eram livres inclusive do mau cheiro que depois eu senti.
Cheguei à escola bem motivado. Meus pés apertados me faziam andar meio torto. Adentrei no prédio disposto a aprender as coisas dos brancos. Logo de cara me deparei com um grupo de colegas. Todos eram um pouco parecidos comigo e senti que poderiam ser meus amigos. Fiquei feliz. No entanto, quando fui me aproximando do local, um deles apontou o dedo para mim e gritou: 
– Olha o índio que chegou na nossa escola!!! Olha o índio!
Vou dizer uma coisa e posso até jurar: eu fiquei olhando para todas as partes procurando o tal índio! Achei que era um passarinho que eu não conhecia! Quando eles viram que eu não sabia do que falavam, começaram a rir de mim. Eles acharam que eu era burro ou coisa parecida. Só depois é que me dei conta de que eles falavam de mim.
Pode parecer estranho, mas aquela palavra índio eu não conhecia. Eu não sabia que existia alguém que se chamava índio. Meus pais nunca me chamaram assim; meus irmãos também não; meus outros parentes idem. Era uma palavra que não cabia em meu pequeno vocabulário português. Entendi, então, que meus colegas me deram um apelido. No começo eu até achei que era legal ter um, mas depois fui percebendo que, por causa dele, quase sempre eu era isolado nas brincadeiras, no pátio, na hora do lanche ou nas atividades escolares. Percebi que meu apelido era motivo de piada e minha origem era motivo de chacota. Isso me deixava muito triste.
O engraçado é que eles se pareciam comigo: tinham cara igual a minha, cabelos lisos como os meus, maçãs do rosto salientes e até pé chato alguns tinham. Por que eles zombavam de mim? 
Sabem quem me esclareceu? Minha mãe. Quando cheguei em casa e contei o que havia acontecido, ela me colocou entre suas pernas, afagou meus cabelos e disse, sem rodeios: 
– Eles se acham civilizados, meu filho. Acham que por estarem mais tempo na cidade, já aprenderam tudo e podem fazer mal para as outras pessoas. Não ligue para as bobagens que eles dirigem a você. Mas também não se permita ficar como eles. Seja sempre um bom menino e não deixe que um apelido destrua a bondade de seu coração.
Mamãe falou isso e me deixou brincar. Não pensei duas vezes e corri para encontrar meus amigos verdadeiros, que moravam na mesma aldeia que eu. Eu tinha perto de nove anos. Eu nunca gostei de ser índio.

COLUNISTAS / Daniel Munduruku

Daniel Munduruku é graduado em filosofia e doutor em Educação pela USP(Universidade de São Paulo).

Autor de premiados livros para crianças e jovens, reconhecido nacional e internacionalmente, comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República.  Reside em Lorena desde 1987; é casado com a professora Tania Mara, com quem tem três filhos.


dmunduruku@uol.com.br

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