Avós são seres estranhos. Alguns são muito bonzinhos e outros têm cara de malvados. Tem os que gostam de ser velhos e outros que não querem nem ouvir essa palavra. Parece que não gostam de envelhecer por medo ou por vergonha.
Na cidade, conheci muitos velhos que não querem ser velhos. Acham que é um defeito ter vivido muito tempo. Tem homens e mulheres com idade avançada, mas insistem em continuar jovens. Eu sempre achei isso um tanto esquisito, porque venho de uma tradição em que ser velho é o sonho dos jovens. Nesse lugar, o velho gosta de ser velho e faz questão de ser tratado dessa maneira. Ok, vou explicar melhor. Sei que parece confusa essa ideia.
Desde cedo, a gente aprende a diferenciar as pessoas. Sabemos quem é nosso pai e nossa mãe; nossos tios e tias; irmãos e irmãs, primos e primas; avó e avô. Essa ordem é importante para dar às crianças uma referência espacial. Ela sabe a quem recorrer em caso de precisão. Questão de sobrevivência.
Com o passar do tempo, a gente vai entendendo a função que cada uma dessas pessoas ocupam em nossa vida. Vamos descobrindo que os pais são nossos provedores e educadores de nossos corpos. São eles quem nos alimentam, nos banham, nos ensinam a andar, nos levam para passear, fazem nossos brinquedos, ensinam os caminhos da floresta, a confeccionar nossos utensílios, catam nossos piolhos e brigam com a gente também. Depois, percebemos que os irmãos servem como suporte para esse aprendizado. Servem também para brigar com a gente. Os primos são nossos colegas de jogos e brincadeiras. Tios e tias são nossos outros pais. Mas para que serve um avô e uma avó?
Eles servem para educar nosso espírito. São pessoas que já passaram pela vida e carregam no corpo as marcas do tempo passado. Trazem consigo a experiência de ter vivido e compreendido os sentidos de existir. São pessoas reflexivas, equilibradas e muito doces. Sim, são doces. São eles quem oferecem guloseimas escondidas dos pais; relevam as broncas que os pais nos dão; elogiam nossas decisões mesmo que não entendam direito o que estamos fazendo. Lá na aldeia, são eles os responsáveis por contar as histórias ancestrais e manter em nós o espírito da tradição. Eles formam nosso espírito para entender os mistérios da vida.
Lá de onde vim, os velhos não abrem mão de seu papel de formadores do espírito dos mais jovens. Eles não querem ser jovens para sempre. Querem ser velhos para sempre. Querem ajudar os jovens a não perderem o rumo. Sabem que têm um papel importante na vida da comunidade, na sua continuidade.
Isso que aprendemos desde cedo: fazemos parte de uma teia. Se cada pessoa fizer sua parte, tudo correrá sempre bem. Também por isso fazemos os rituais de passagem. Isso quer dizer que somos ensinados a viver bem cada fase da vida em que estamos. Criança tem que ser criança; jovem, jovem; adulto não pode abrir mão de ser adulto e assumir as consequências por ser assim; o avô e a avó – que chamamos carinhosamente de velhos – não podem querer ser outra coisa nesse momento. Dessa maneira, vamos marcando cada fase da vida com o que chamamos de rituais de passagens, que são marcações de tempo que determinam nosso momento de vida. Assim, a gente não esquece quem a gente é.
Eu tive avós muito estranhos, mas também muito legais. Eram pessoas felizes em sua velhice e me ensinavam a viver bem minha vida. Minha avó era uma bruxinha muito esperta e inteligente. Deixou em mim muitas marcas e saudades. Mas foi meu avô quem ensinou coisas muito importantes para o que eu viria a ser mais tarde. Ele me ajudou a vencer o medo que eu tinha da cidade e das pessoas da cidade. Ele foi me conduzindo para eu me tornar um ser humano feliz, ainda que tivesse que enfrentar os desafios de viver numa sociedade diferente da minha. Ele foi me conduzindo por uma picada na floresta que depois se transformaria em trilha e, por fim, num caminho seguro e feliz.
Hoje em dia, eu penso que meu avô já antevira tudo o que eu passaria em minha vida e foi criando um jeito de eu pode enfrentar as dificuldades com desenvoltura e com uma dose de bom humor. Ele foi o filósofo mais sábio que eu conheci, o velho mais jovem, o homem mais íntegro e correto que passou por minha vida. Ele não me deixou em nenhum momento e não abriu mão de sua idade e experiência quando precisei. Lamento não ter nenhuma foto dele. Tudo o que tenho são as lembranças que minha memória deixa de vez em quando escapar para eu não esquecer que tive um avô para chamar de meu.
Daniel Munduruku é graduado em filosofia e doutor em Educação pela USP(Universidade de São Paulo).
Autor de premiados livros para crianças e jovens, reconhecido nacional e internacionalmente, comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República. Reside em Lorena desde 1987; é casado com a professora Tania Mara, com quem tem três filhos.
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