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COLUNISTAS / Mundurukando

Em noite sem luas, histórias de terror

11/11/2015

As férias escolares no meu tempo de estudante eram bem diferentes das de hoje em dia. O ano escolar acontecia de março a novembro. Nos meses de férias eu ia para a aldeia. Lá eu esquecia da escola, de seus professores, exames e provas e também de suas tarefas. Esquecia também dos colegas chatos, dos apelidos que eu recebia e das provocações que me dirigiam.

A aldeia era algo sensacional para um menino-quase-homem. Lá eu revivia muitos momentos gostosos, reaprendia costumes, palavras, gestos. Retomava a culinária composta por muita mandioca e seus derivados, peixes diversos, carnes de caça, cará, batata doce, inhame e frutas em geral. Também ouvia as histórias dos adultos e dos velhos. Corria no mato e nadava nos rios. Estas são lembranças muito felizes para mim!

Nossa aldeia não tinha energia elétrica, mas isso não nos impedia de criar jogos e brincadeiras o tempo todo, inclusive na parte da noite, quando tudo ficava um breu, principalmente em noites sem lua. Infelizmente, o dia terminava cedo para nós e nem sempre a gente podia ficar muito tempo acordados, porque o dia seguinte começaria muito cedo. Além disso, os avós diziam que a noite foi feita para a gente dormir e sonhar. Somente em ocasiões bem especiais se podia ficar acordado por mais tempo.

Algumas vezes a gente quebrava a regra, claro. Os adultos iam dormir com as crianças pequenas e nós, meninos-quase-homens, queríamos desafiar a noite enluarada. Nessas ocasiões, a gente ficava conversando por muito tempo. Ou mesmo ficar observando quando casais adultos saíam escondidos para namorar no escuro da noite. Algumas vezes a gente seguia-os para ver o que iriam fazer e aonde iam se deitar. Acontece que quase sempre a gente era descoberto antes de nos aproximarmos, porque os meninos são sempre barulhentos quando estão juntos. O casal jogava objetos na gente para deixá-los em paz. A gente saia gargalhando dali e ia para outro lugar. Era muito bom!

Em outras ocasiões, os avós se reuniam em torno de uma fogueira para conversar, trocar ideias e impressões sobre a vida, o universo, a natureza. Falavam de Deus, da criação do mundo, dos espíritos da floresta, das doenças modernas e das confusões que os jovens aprontavam. Discutiam política interna e externa e contavam histórias antigas. Quase sempre a gente podia participar, pois era um momento aberto a todo mundo que quisesse. As mulheres logo preparavam algum alimento como café, chibé, pirão, tapioca ou beiju, para que todos comessem e ficassem atentos. Cada família trazia alguma comida e muitas histórias para compartilhar. Era um instante comunitário muito interessante para todos nós.

Nessas reuniões, falava-se de tudo, mas quase sempre a conversa se transformava em histórias no final. Contava-se histórias de amor que faziam os casais suspirarem; de alegria, humor ou anedotas, em que os contadores retratavam passagens da vida real; de encantamentos, que eram aquelas histórias fantásticas, cheias de magia a nos lembrar nosso lugar no mundo; de terror, histórias de espantar ou assustar as criancinhas. Essas eram contadas pelas mulheres mais velhas. Eram narrativas de como os seres da floresta raptavam as criancinhas para serem devoradas em rituais em noites sem lua. Algumas ensinavam o medo, o pavor e a burrice que era tentar enganar a morte.

– A morte não se engana, meus netos. Ela é certeira. Pode até demorar um tiquinho para uns e outros, mas ela vem com toda certeza. Para vivermos muito, temos que nos aliar à morte e não desafiá-la. Quem a desafia acha que está vencendo, mas no final, ela ri por último.

Era assim que as avós começavam a contar as histórias antigas, em que os antepassados desafiavam a morte. A gente ficava quietinhos para ouvir. O único barulho era o do fogo ardendo ou do pio da coruja inquieta no galho da árvore. Meninos e meninas, tínhamos medo de nos levantar para ir ao mato fazer xixi e também porque não queríamos perder nenhuma parte da história que se arrastava por horas. Algumas vezes, as avós não terminavam de contar uma história e deixavam o final para o dia seguinte. A gente ficava frustrado, claro, mas torcendo para a noite seguinte chegar logo para conhecermos o final do conto.

Quando a gente voltava para casa, a história continuava dentro da gente. Nossos pais e irmãos mais velhos falavam sobre suas próprias experiências e a roda de histórias continuava por mais alguns minutos, até que todos nos aquietávamos nas redes e ouvíamos nossos pais desejarem boa noite para nós, lembrando-nos que, no dia seguinte, a vida continuava e que precisávamos acordar cedo para que o dia fosse muito proveitoso.

Eu demorava um pouco a dormir. As histórias me intrigavam muito e minha cabeça dava muitas voltas antes de cair nos braços do sono.

COLUNISTAS / Daniel Munduruku

Daniel Munduruku é graduado em filosofia e doutor em Educação pela USP(Universidade de São Paulo).

Autor de premiados livros para crianças e jovens, reconhecido nacional e internacionalmente, comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República.  Reside em Lorena desde 1987; é casado com a professora Tania Mara, com quem tem três filhos.


dmunduruku@uol.com.br

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