Mais um texto da série “Crônicas a Granel”
[À Cristino Wapichana]
Minha vida é um poema que escrevo a cada dia. Seus versos, sua métrica, seus sentidos, significados e significantes são palavras que componho a cada nova ação, a cada nova atitude, sempre a nova escolha que faço.
É assim que penso a biografia de cada pessoa. Entendo que cada um escreve, compõe seu verso único em sintonia consigo mesmo, com seus amores, com suas dores. A vida dos outros não é para ser seguida. Biografias não são para serem imitadas. Menos ainda interpretadas. Olho para cada pessoa como um poema único. Poema é para ser lido, não para ser interpretado. Acho que interpretar poema é a coisa mais sórdida que alguém pode fazer, na escola ou na vida.
Olhar para a biografia de alguém é bom. Deve-nos servir de inspiração nunca modelo. Acompanhar suas vitórias, suas glórias, seus tropeços, suas derrotas, seus sorrisos, seus choros devem dizer algo para nós. Cada pessoa é um poema e poema não é para ser interpretado. A interpretação fere o poema, fere quem o compõe. Gosto de pensar no outro, na pessoa lida como uma poesia inacabada, um texto que se está escrevendo e que seu final pode ser surpreendente.
Interpretar é dar sentido, significado ao que é lido. Interpretar é como desvendar o que não pode ser desvendado; é tentar descortinar o que só pode ser visto sob o véu do mistério; é revelar o que nos parece oculto, segredo, mistério. É tentar imaginar o que está por trás das palavras ainda que seu autor não o tenha dito. É roubar palavras de quem escreveu para acrescentar suas próprias palavras. É, então, iludir a si próprio. O poema-vida de outrem não é para ser interpretado, revirado, deslocado, desfocado, desalinhado, desbaratado. Se o fizermos, cometemos um erro imperdoável.
É assim que imagino minha biografia. Ou melhor, quase biografia. Biografias são vidas já vividas, completas e que já desvendaram seu final. Prefiro achar que estou no processo de escrevê-la. Como ainda não cheguei ao final do meu poema-vida também não o poderei dar como concluído.
Sei, no entanto, que muitos querem me interpretar. Sei que tem gente que olha para o poema que escrevo buscando significados e significantes. Sei que tem gente que quer desvendar os mistérios que pareço revelar pela escrita que faço, pelas falas que calo, pelo silêncio que falo. Sei que tem gente que procura nas entrelinhas do meu poema-vida alguma brecha onde eu revele meus sonhos, meus medos, meus segredos ocultos.
Não posso condenar quem age assim. Não posso dizer para não fazê-lo, pois imagino que precisam jogar o jogo da interpretação que pede explicação mental ao que não consegue apenas sentir. Não fico olhando a biografia dos outros para roubar-lhes sentidos ocultos. Queria que as pessoas não lessem minha (quase) biografia tentando me desvendar com suas manias de interpretação, seus desejos de dar sentido ao que vivo.
Quero dizer logo de chofre que o poema-vida que escrevo é meu, apenas meu. Não escrevo para que me leiam buscando respostas para seu próprio poema-vida. Meu poema-vida escrevo para meu deleite. Somente eu sei a força que tem um pôr-do-sol. Apenas eu sei a necessidade de ouvir o canto dos pássaros logo pela manhã ou entender a nostalgia feliz que me invade quando sinto o tempo nublar transformando o dia no dia mais feliz de minha vida. Somente eu sei por que gosto de olhar as águas correntes de um rio. Somente eu sei o que é ouvir histórias não interpretáveis da boca de um ancião. Sei o rebuliço que estas palavras provocam no meu peito, no meu ventre, no meu ser. Não adianta tentar “ver por trás das palavras”. Isso é ilusão. A vida é uma ilusão. Ou melhor, uma alusão. Cada um escreve seu poema-vida. Pode ser que outros poemas-vida o inspire. Isso acontece. É bom que aconteça. É para isso que servem nossos olhos: para ver. É bom não ficar doente dos olhos. Especialmente dos olhos da alma. Ler o poema-vida dos outros com os olhos da alma é enxergar na escuridão, é ter uma epifania cósmica. É ver de olhos fechados. É intuir que o melhor poema ainda será escrito. E será sempre o seu.
Não me leiam buscando respostas. Elas não servem para você. Minhas respostas são minhas respostas para o drama do existir. Do meu drama de existir. Se por algum motivo ainda assim você queira ler meu poema-vida, que seja para se inspirar e compor seu melhor poema-vida: você.
De resto, saiba que somos poemas-vidas que navegam os mesmos mares. Neles há turbulências, sacolejo, sacrifícios, sacrilégios. Quero ler seu poema-vida não para ser você, mas para que me inspire a escrever o meu próprio poema. Somos versos únicos. Somos Uni-Versos.
Daniel Munduruku é graduado em filosofia e doutor em Educação pela USP(Universidade de São Paulo).
Autor de premiados livros para crianças e jovens, reconhecido nacional e internacionalmente, comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República. Reside em Lorena desde 1987; é casado com a professora Tania Mara, com quem tem três filhos.
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