Todos os dias aprendo um pouquinho sobre como ensinar pessoas com deficiência visual. Você, leitor, pode se perguntar: “mas ela não se diz especialista no assunto?”
Ser especialista não é dominar receitas e aplicá-las como numa massa de bolo. com os alunos, as pitadas de açúcar precisam ser diferentes para cada um. Tem sido assim todas as semanas. A ousadia da nossa profissão é saber aplicar o ingrediente certo para que o bolo cresça e, além da beleza, se torne saboroso.
A grande alegria em ser professora é reconhecer o quão capazes são nossos alunos se lhes forem oferecidas condições para o desenvolvimento de habilidades. Tornamo-nos mais maduros quando o sucesso não depender somente dos acertos, mas das situações transformadas, transportadas para o mundo real. O improviso faz parte dessa jornada escolar, como companheiro fiel e leal, pois, muitas vezes, o maior ensinamento não é um conteúdo, mas a escuta, a experiência compartilhada.
São quinze anos e alguns meses de profissão; são centenas de horas de estudos, de cursos, de planejamentos e relatórios. Girar a maçaneta para entrar numa sala de aula ainda hoje é um ato de pertencimento a um mundo que passa a ser uma missão. É um futuro construído por várias mãos: Aluno e professor se misturam, no momento corajoso de doação, de confiança e de descobertas.
Era a minha primeira aluna. eu ensinava Braille, conceito que eu já dominava também por ser cega, usuária desse código de leitura tátil e escrita. Naquela época, ensinar Braille significava soletrar números, pois as letras desse sistema são formadas através de uma combinação numérica de pontos que estão localizados em espaços determinados. Uma distração dela e um equívoco na composição da letra “m”. Ela escrevia a palavra “melancia”, digitando em uma máquina de datilografia especial. Decidi que aquele ponto a mais seria o próximo aprendizado, tirando dele o peso do erro. Ora, se aquela letra “m” se transformara em “p”, então foi que mostrei a nova composição e ampliei o seu repertório de palavras, desafiando-a a escrever a palavra “pipoca”.
Aquela aula não havia sido planejada, mas foi muito mais produtiva do que continuar persistindo numa soletração mecânica de pontos, numa repetição de letras ou simplesmente ter evidenciado um erro. Daí conheci o valor simbólico do sistema Braille e passei a aplicá-lo em minhas aulas. Foi aí que descobri o que era ser professora.
De repente um aluno apresentava grande dificuldade de leitura linear. Seus dedos deslizavam sobre linhas aleatórias, cambaleava entre cima e baixo e não permanecia na mesma linha horizontal. A leitura em Braille é mais precisa quando os dedos tocam de leve Às letras, desenhando pequenos círculos sobre a superfície dos símbolos, como um zigzaguear. Qualquer movimento diferente desse, torna a leitura indecifrável. Na época eu havia aprendido tecer cachecóis num tear de pregos. O movimento dos fios era exatamente o mesmo movimento de zig-zag, intercalando entre um prego e outro. Então decidimos juntos trocar a leitura pela tecelagem e em poucas semanas seus dedos já acompanhavam, com precisão, as várias linhas de palavras e histórias escritas em Braille.
Já usei argolas de chaveiro para ensinar intersecção de conjuntos; já fiz origami para mostrar as figuras geométricas; cortei um quadrado para transformar em um triângulo retângulo; dei nós em um barbante para ensinar reta numérica; descobri que com bolinhas de gude eu poderia demonstrar potenciação; com canudinhos de plástico ensinei fração. através do dominó, ensinei lateralidade. Uso o que tenho em mãos e muita criatividade para colocar em prática as ideias, que nascem da simplicidade. No dia-a-dia descobrimos as oportunidades que a profissão nos oferece.
Podemos aprender números jogando baralho. Também conhecer palavras jogando bingo. Num caça-palavras em Braille é possível ensinar letras isoladas, agrupadas, posições e lateralidade. ensinar pessoas com deficiência visual é fazer do tempo nosso maior aliado. É contextualizar o que não pode ser tocado. é sentir, descobrir e simplificar o complexo.
Encontrar estratégias inovadoras para que nossos alunos descubram um universo de possibilidades é o que nos faz eternos aprendizes. sou grata por ser professora, porque carrego comigo um pouquinho de cada um. E das coisas que já ensinei, certamente aprendi que a melhor receita é aquela que colocamos nossas pitadinhas de amor. Talvez seja preciso aprender a aprender, só assim nos tornaremos capazes de ensinar; seremos, então, professores de verdade.
Luciane Molina é pedagoga, braillista e pessoa com deficiência visual. Possui pós-graduação em Atendimento Educacional Especializado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e em Tecnologia, Formação de Professores e Sociedade pela Unifei (Universidade Federal de Itajubá). Sua trajetória profissional inclui trabalhos com educação inclusiva, ensino do sistema Braille, da tecnologia assistiva, do soroban e demais recursos para pessoas cegas ou com baixa visão, além de atuar desde 2006 com formação de professores. Foi vencedora do IV Prêmio Sentidos, em 2011, e do IV Ações Inclusivas, em 2014, ambos pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo (SEDPCD-SP). Também é palestrante e co-autora do livro Educação Digital: a tecnologia a favor da inclusão. Atualmente, integra a equipe técnica da Secretaria Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência e do Idoso de Caraguatatuba (SEPEDI), com ações voltadas para a comunicação inclusiva, políticas públicas para pessoas com deficiência visual e Núcleo de Apoio às Deficiências Sensoriais.
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