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Histórias lorenenses – Um 1º de outubro trágico

09/12/2016

Uma história pode ser contada de diversas maneiras e sob ângulos diferentes. Foi o que aconteceu com o relato do acidente que vitimou o Conde Moreira Lima e seu cocheiro, num passado distante, na passagem de nível próxima ao Santuário de São Benedito.

Vou começar contando como o poeta Péricles Eugênio da Silva Ramos o descreveu em seu livro “Lua de Ontem”.

Segundo esse ilustre lorenense, era um dia azul de outubro de 1925, bem de manhã, quando o Conde Moreira Lima saiu de carruagem para sua visita diária à Santa Casa de Misericórdia de Lorena, onde era provedor.

Na linha do trem, havia passado o trenzinho de Piquete e os cavalos foram fustigados para atravessar os trilhos. Inesperadamente, uma aparição de aço, resfolegando vapor e fuligem, surgiu à frente da carruagem, puxada por dois cavalos – a locomotiva do “Rápido Paulista” apareceu do nada e abalroou o veículo, destroçando-o. O Conde foi projetado para fora e caiu na lateral da linha do trem, com os membros fraturados. O seu cocheiro, um senhor negro que viveu e morreu no anonimato, teve o corpo despedaçado pelo trem. Cena pungente, na manhã de sol, foi aquela da mulher do desgraçado condutor da carruagem, recolhendo num caixote os restos sangrentos do seu companheiro espalhados nos dormentes.

Esse pormenor da coleta dos restos mortais do cocheiro foi uma licença poética do nosso poeta ou a realidade dos fatos? Pergunto isso porque, nos outros relatos sobre o acidente, não apareceram esses detalhes terríveis narrados por Péricles.

Faustino César, historiador lorenense, é mais preciso ao falar sobre o acidente. Quanto aos ferimentos do Conde, revela que este sofreu apenas uma fratura exposta numa das pernas. E ressalta que esse fato não diminuiu as dores e os padecimentos atrozes do nobre lorenense, sendo que os meses que passou imobilizado ao leito o enfraqueceram e levaram à morte.

O dr. Gama Rodrigues, vulto importante da historiografia da nossa terra, deu-nos outros detalhes que ajudam a mostrar a verdadeira dimensão dessa tragédia. Através do seu relato podemos reconstruir, em parte, a sequência de acontecimentos que levaram o Conde aos seus últimos dias da sua vida.

Imaginemos, assim, à luz dos dados do dr. Gama, o transcorrer dos acontecimentos do dia 1º de outubro de 1925. O Conde Moreira Lima tinha acabado de se arrumar para ir à sua visita diária à Santa Casa – ei-lo vestido à maneira que lhe era habitual: o traje sempre preto, a camisa branca, de peitilho, punhos e colarinhos engomados, gravata de laço preto e chapéu duro. Ele era um senhor ainda impertigado para os seus 84 anos de idade. Nos últimos anos, porém, uma curvatura do dorso lhe punha alguma doçura no porte altaneiro.

Ele ultrapassa as duas colunas de estilo dórico da entrada do seu palacete e desce por um conjunto arquitetônico de mármore de Carrara, composto por dois vasos de flores e duas estátuas que ladeiam uma escadaria de largos corrimões, chegando até a porta onde o espera, no meio-fio, a sua carruagem.

Um lindo dia, aquele 1º de outubro; azul como o poeta Péricles quis que fosse em sua prosa poética do “Lua de Ontem”. O Conde não sabia que começava naquele dia o seu calvário, a trajetória final para a morte depois de um prolongado martírio.

O “Rápido Paulista” irrompendo à frente da carruagem, gritos, sangue espirrando, relinchos agônicos dos cavalos, o resfolegar fuliginoso e enfumaçado da locomotiva – estes foram talvez os sons e imagens que se sucederam vertiginosamente naquela manhã trágica à frente do nosso grande concidadão.

Depois, segundo Gama Rodrigues, transcorreram-se dias tormentosos na Santa Casa e mais tarde no Asilo dos Pobres de São José, onde o Conde quis refazer-se dos seus ferimentos, para depois passar seus últimos dias no casarão da rua Viscondessa, vindo lá a falecer, nove meses depois, de um colapso cardíaco.

A noite do dia 2 de julho de 1926 foi tristíssima para os lorenenses – o palacete do Conde teve os seus salões tomados, durante toda a noite, pelos parentes e amigos do ilustre lorenense, que ali teve a sua câmara ardente.

Por último, por que não contar a história do dia do acidente do Conde Moreira Lima através dos olhos e da percepção de um menino de oito para nove anos de idade?

Ele se chamava José de Souza Ribeiro e estava sentado na calçada defronte à Alfaiataria Cruz, na esquina da rua principal com a rua São Benedito. A mãe do garoto era cozinheira do proprietário da alfaiataria, o senhor José Cruz, que morava nas redondezas com a sua esposa. Esse estabelecimento comercial ficava onde depois se construiu a loja “A Princesa”, do seu Davi Rafael; hoje, ali se localiza uma lotérica.

Pois o menino José, num momento em que folgava vendo a passagem dos poucos transeuntes da rua, levou um tremendo de um susto. Ali perto, na linha férrea, perto da igreja de São Benedito, ele ouviu um barulho ensurdecedor de gritos, relinchos de cavalos e da freada brusca de um trem, cujas rodas retiniam agudamente nos trilhos.

Curioso, o moleque chegou ao local do acidente e não viu muita coisa, senão um dos dois cavalos da carruagem do Conde Moreira Lima, mortalmente ferido, sendo abatido por um tiro de misericórdia. Àquela altura, o Conde já havia sido levado correndo para a Santa Casa de Misericórdia e o corpo do cocheiro retirado (num caixote, pela sua esposa?) dos trilhos.

No dia 25 de maio de 2009, à hora do almoço, eu conversei com o menino de 84 anos atrás, o José de Souza Ribeiro. Ele tinha então 92 anos de idade e morava na rua Delfim Bittencourt, com a família. Esse digno lorenense, de memória privilegiada, é provavelmente a última testemunha viva da tragédia do dia 1º de outubro de 1925.

COLUNISTAS / Olavo Rubens

Olavo Rubens Leonel Ferreira é formado em Direito, Ciências Sociais e Pegagogia. É mestre em Educação. Lecionou na Universidade de Taubaté, na Faculdade de Direito de Lorena, nas Faculdades Integradas de Cruzeiro, nas Faculdades Teresa D´Ávila de Lorena e no Anglo Vestibulares. Escreve muito; tem uma meia dúzia de livros publicados e a maior parte do que produziu ainda é inédita. Durante alguns anos publicou crônicas sobre Lorena no saudoso Guaypacaré, dos seus amigos João Bosco e Carolina. Mora em São Paulo.


olavo.rubens@hotmail.com

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