Autor: Daniel Munduruku
Daniel Munduruku é graduado em filosofia e doutor em Educação pela USP(Universidade de São Paulo).Autor de premiados livros para crianças e jovens, reconhecido nacional e internacionalmente, comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República. Reside em Lorena desde 1987; é casado com a professora Tania Mara, com quem tem três filhos.
Minha família era pobre, já disse. Meu pai trabalhava como carpinteiro em muitas obras para poder sustentar tantas bocas num lugar que não era nosso. Todos os irmãos antes de mim, com exceção de um, eram meninas. Nessa época, meninas não trabalhavam. Meu irmão mais velho e eu tínhamos que ajudar em casa com o que fosse possível. Meu pai era um profissional bastante requisitado, mas não tão valorizado financeiramente. Muitas vezes teve que viajar para lugares mais distantes de nossa cidade para poder ganhar um pouco mais de dinheiro para nos sustentar. Suas longas ausências de casa deixavam minha…
Quando criança eu era fogo na roupa, como dizia minha mãe. Era uma expressão para definir quem era considerado um pimentinha, gente que aprontava com todo mundo. Confesso: eu era assim mesmo. E o pior é que eu influenciava meus primos a serem também. Por isso a gente vivia sempre juntos – fora as horas em que eu gostava de ficar sozinho, sozinho, sozinho. A aldeia nos proporcionava bastante oportunidade para a gente aprontar. Quando eu ia para a escola na cidade, eu bem que tentava me comportar, mas quase nunca conseguia. Apesar dos desconfortos que passava por lá, eu…
Mais um texto da série “Crônicas a Granel” [À Cristino Wapichana] Minha vida é um poema que escrevo a cada dia. Seus versos, sua métrica, seus sentidos, significados e significantes são palavras que componho a cada nova ação, a cada nova atitude, sempre a nova escolha que faço. É assim que penso a biografia de cada pessoa. Entendo que cada um escreve, compõe seu verso único em sintonia consigo mesmo, com seus amores, com suas dores. A vida dos outros não é para ser seguida. Biografias não são para serem imitadas. Menos ainda interpretadas. Olho para cada pessoa como um…
As férias escolares no meu tempo de estudante eram bem diferentes das de hoje em dia. O ano escolar acontecia de março a novembro. Nos meses de férias eu ia para a aldeia. Lá eu esquecia da escola, de seus professores, exames e provas e também de suas tarefas. Esquecia também dos colegas chatos, dos apelidos que eu recebia e das provocações que me dirigiam. A aldeia era algo sensacional para um menino-quase-homem. Lá eu revivia muitos momentos gostosos, reaprendia costumes, palavras, gestos. Retomava a culinária composta por muita mandioca e seus derivados, peixes diversos, carnes de caça, cará, batata…
Apesar de todo meu esforço, eu não conseguia acompanhar os estudos. Não conseguia entender muito bem as coisas que meus professores ensinavam ou queriam ensinar. Para piorar tudo, eu levava uma porção de tarefas para casa a fim de treinar, treinar e treinar. Diziam os professores que era a única maneira de aprender: decorar as fórmulas, os lugares, os verbos, as métricas. Isso me aborrecia porque me faziam sentir um burro incapaz de aprender o que todo mundo aprendia com rapidez. Meus pais tentavam me ajudar, mas o que eles poderiam fazer? Nada ou quase nada, a não ser me…
Quando eu entrei na escola, meu mundo se dividiu. Antes eu tinha o tempo todo para mim: brincava, corria, nadava no igarapé, subia nas árvores, ia para a roça acompanhar minha mãe, ouvia histórias dos avós, cuidava de minha cutia de estimação. Enfim, o dia não acabava nunca! Quando minha mãe inventou de me colocar na tal escola da cidade, para que eu crescesse sabendo mais coisas que ela, o tempo tomou outra dimensão. Na verdade, não foi minha mãe quem insistiu com a escola, soube disso depois, mas o governo havia criado uma lei que dizia que todas as…
Avós são seres estranhos. Alguns são muito bonzinhos e outros têm cara de malvados. Tem os que gostam de ser velhos e outros que não querem nem ouvir essa palavra. Parece que não gostam de envelhecer por medo ou por vergonha. Na cidade, conheci muitos velhos que não querem ser velhos. Acham que é um defeito ter vivido muito tempo. Tem homens e mulheres com idade avançada, mas insistem em continuar jovens. Eu sempre achei isso um tanto esquisito, porque venho de uma tradição em que ser velho é o sonho dos jovens. Nesse lugar, o velho gosta de ser…
Sempre gostei de andar sozinho. Me dava preguiça andar em grupo. Eu gostava de falar com as árvores e com minha cutia de estimação. Também gostava de chupar manga no pé. Quando o final do ano ia se aproximando e as mangueiras começavam a florir, meu sorriso avançava no meu rosto. Tão logo elas amadureciam, eu corria para o quintal de casa e ia me empanturrar com elas. Levava sempre uma cuia com farinha de mandioca. Sentado num galho, eu ficava um tempão contemplando a beleza da árvore que se espalhava pelo quintal. Em seguida, apanhava a que eu achava…

